sábado, 12 de janeiro de 2008

A Solidão de Um Menino - Parte 1

Ler era seu maior problema. Não era por má vontade, tinha um sério problema com as palavras. Desde criança teve problemas de aprendizagem, por isso ficou pouco tempo na escola. Naquela época quem apresentasse esses tipos de dificuldade era duramente recriminado. A professora tinha todo o direito de reprimir e castigar os alunos. Coitado, ele era o que mais apanhava. Sempre. Era, assim, o mais revoltado e desordeiro. Um Menino branco, baixo, com sardas no rosto, cabelos negros e orelhas em abano, seu nome era Setembrino Rossi, mas era chamado somente de Rossinho. A professora, uma senhora negra de olhos duros e diretos, que não se valia de meias palavras, sempre ia direto ao assunto e tinha uma satisfação constante de acabar com o dia do menino sardento e “sarnento”.
O relacionamento dos dois sempre foi difícil. Ela não entendia que bater só dificultava mais ainda as coisas e o deixava cada vez mais distante do aprendizado. Disso ela não queria nem saber, achava que era pura “sem-vergonhice” de um moleque mal criado.
Literalmente mal criado. Rossinho estava aos cuidados de sua avó desde os dois anos de idade. Não que a senhora o tratasse mal, isso entenderemos mais a frente.
Naquela conflituosa década de 40 do século passado ele nascera. Logo após o nascimento, seu pai, um jovem agricultor que morava na divisa do estado cultivando terras alheias, fora enviado por seu país a uma guerra em terras distantes, além do mar. De lá nunca mais voltara. Dele a família demorou a ter notícias. Após dois anos do embarque, um telegrama chega a sua casa. O conteúdo daquela correspondência era muito terrível, porém já imaginado. O pai de Rossinho estava morto. Esta notícia lançou a mãe do menino num enorme abismo de depressão, mesmo após tanto tempo ela amava seu marido e por ele esperava todos os dias. Esta depressão foi tamanha, fez com que ela rejeita-se até mesmo seu próprio filho, que tinha apenas dois anos de idade e que nunca havia nem mesmo visto seu pai.
Agora abandonado no mundo, órfão de pai e rejeitado pela mãe, o futuro de Rossinho era, de certa forma, incerto. Seu avô materno resolveu então levá-lo até a sogra de sua filha, a avó paterna de Rossinho. Partiu numa manhã fria e nublada, com o menino nos ombros. Esta foi a última vez que o garotinho viu sua mãe, nunca mais o veria, foi como um segundo parto, separados para sempre. O avô caminhou por dezessete quilômetros até a casa de dona Isabel Carvalho. Chegando lá, se deparou com uma velha casa de madeira, com frestas medias entre uma tábua e outra, era toda rodeada por um pequeno bosque. Encontrou a Dona Isabel sentada próxima a casa. Entregou o menino a ela e sem dizer nada saiu. Dona Isabel entendeu o que aquele gesto significava, o aceitou, porém não sabia por onde começar. Esta senhora de setenta e poucos anos, analfabeta e com as vistas cansadas, pouco podia fazer pela a educação do menino. Quando era ainda indefeso e não conseguia nem mesmo comer sozinho ela o matinha sempre dentro de casa e o alimentava mal, afinal a pobre mulher dispunha de recursos escassos. Logo que pode se virar sozinho, Rossinho foi mais uma vez largado, de uma forma mais eufêmica, mas ainda assim concreta. Sua avó não lhe cobrava muitas satisfações, na verdade quase nenhuma. Fazia o que queria. Ele tinha apenas seis anos quando estas coisas se deram.
Daí para frente, o menino transformou-se. Foi moldado pela solidão, pelo abandono e pela falta de limites. Se tornando cada dia mais anti-social. Estes fatores se mostraram muito presentes no momento que ingressou na escola. Esta entrada para uma primeira vida social de contatos constantes com outras pessoas foi de modo ainda maior traumática para o menino. Nesta oportunidade mostrou automaticamente seus traços repulsivos e autistas. A escola o recebeu da mesma maneira que fora recebido todas às vezes de sua vida, isolando-o e o abandonando. Isso foi muito duro, assim como das outras vezes. Ele estava criando uma forte casca, que com o tempo seria impossível transpô-la para salva-lo de si mesmo.
Aquela senhora a qual fora confiada à educação daquela classe não podia compreender o menino. Não conhecia sua vida longe dos cercados de madeira e arame da escola. Detinha-se a surrá-lo por suas ações grotescas e diminuía ainda mais as chances que ele poderia dispor. A culpa por aqueles atos não era de modo algum dele. Ninguém pode dar o que não possui. Se o menino era maldoso, individualista, egoísta e não educado, inteligente, habilidoso e polido era porque havia sido criado assim. Não que alguém tivesse ensinado ele ser um verdadeiro marginal, na verdade é porque fora marginalizado a vida toda. Seus atos de agressão não passavam de gritantes pedidos de ajuda. Logo suas dificuldades de aprendizado se justificavam por nunca ter aprendido nada, por ter um espírito tempestuoso, inconstante.

Continua...

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