sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Homicidas - Parte 2


Roque sabe, não se lembra quando ouviu que na parte mais baixa, depois do soalho da velha casa de madeira onde mora, depois do espaço aberto entre a madeira e a terra, dentro da terra precisamente é onde se escondem. Ali, disseram seus vizinhos – era um cemitério de crianças. Era o lugar onde aquele velho alemão, na época com uns cinqüenta e tantos anos, enterrava seus filhos que nasciam mortos. Ele não sabia por que, poderia ser um problema genético dele ou de sua mulher, certamente era algo que ele não conhecia. Tentaram pelo menos umas seis vezes, em todas, a pior possibilidade se repetiu. Ela abortava espontaneamente no sétimo mês, ou do sétimo para o oitavo mês de gravidez e ele não sabia o por que. Sua bela mulher, cabelos negros e grossos, uma autêntica descendente direta de italianos que migraram para o Sul. Imagine que belas crianças teriam. Na igreja, repetidas vezes viam crianças serem apresentadas, pais agradecidos pelo filho nascido. Em seguida olhavam para dentro de casa e lembravam-se da terra maldita abaixo do soalho. Era o fim. E ninguém sabia por que aquilo acontecia. O velho alemão quase desistiu de ter filhos com medo de ter de enterrá-los, mas numa manhã, sua mulher levantou-se, pegou o velho banquinho de madeira foi sentar na varanda para ler um livro. Quando se abaixou sentiu uma leve pontada na barriga, foi então que percebeu – estava grávida outra vez. Ela teve uma menina, que poderia ficar grande, alta como o pai, um gigante poderia se dizer. Mas seu rosto não era como dos gigantes, não como os germânicos, rostos compostos por falanges duras como suas frentes de batalha, os guerreiros gigantes do norte. A menina era perfeita, uma autêntica latino-americana. Tão logo a menina completou um ano, mudaram-se para uma nova casa, mais ampla, com piscina. Foram felizes pode-se dizer, mas em poucos meses a mulher morreu e o alemão se viu novamente sozinho e agora com uma criança no colo. Ele ficou triste, completamente arrasado vendo sua idéia de família perfeita explodir no ar. Fodido, mas não a ponto de coçar sua cabeça durante a direção e virar o volante rumo às vias que levassem para a antiga casa de madeira. Nem mesmo dentro de seus circuitos mentais mais profundos queria lembrar que aquilo existiu. Às vezes sonhava com as criancinhas, mas nunca via os rostos delas. Um dia enquanto olhava sua menina no portão de casa ele a chamou e ela então olhou para trás, mas não tinha rosto, o velho alemão ficou louco e evitava olhar para a criança desde então. Mas isso era impossível, ela o forçava olhar e ele não via mais seu rosto, assim como os irmãos dela que ele nunca pode conhecer as feições. Com medo de que esse fantasma de carne e osso fosse persegui-lo para sempre o velho acertou a pequena com uma faca de cozinha na cabeça e em seguida cortou a própria garganta e morreu sufocado com o sangue. Roque não sabia de tantos detalhes, isso porque nunca tinha visitado a mesa da casa da vizinha onde estes requintes de crueldade pairavam no hálito das conversas. Ele apenas ouvia de longe um ou outro detalhe do velho alemão desafortunado e desgraçado saindo da boca da vizinha em direção a alguém de sua família, sempre Roque ouvia de longe. Mas esta madrugada era a primeira depois de descobrir na casa do cachorro um osso idêntico a um fêmur, só que miniatura. Vomitou pelo menos umas cinco vezes, nas três primeiras alguma parte do bolo alimentar voltou, mas nas duas últimas foi apenas contorcionismo de abdômen. Não teve coragem de voltar e tirar de lá, muito menos contar para alguém. As dividas impediam qualquer mudança daquela casa naquele momento e caso fosse verdade quem sabe poderiam requerer um desconto na imobiliária ordinária que os agenciou o negócio. - Cemitério de crianças, que horror! - gritava sem emitir som. Como poderia provar? Quem iria cavar aquela porra? A testemunha ocular do único artefato que provaria as histórias da vizinha colocaria os fatos na mesa? Ele teria coragem de se lançar nesta tentativa macabra de provar a merda toda e ganhar algo com isso ou simplesmente ficaria calado?
- Que merda, que porra, que porra do caralho! – corta o cérebro por dentro sem pena.

j.a.


Esquece de tudo. Talvez seja apenas uma mentira fedorenta dessa vizinha fofoqueira, talvez seja uma coisa que ela mesma tenha feito em baixo do soalho da casa dela, talvez seja menos, seja apenas uma história que tenha lido em algum livro de merda, um livro tosco destes de terror vagabundo e alucinógeno demais para ter alguma coisa de verossímil. É, pode ser, pode ser pior ainda, poder ser a trama de um filme, daqueles de segunda linha, produções menores dos estúdios americanos. Terror barato que não tem nem a autenticidade de um trash do Zé do Caixão, nem efeitos especiais suficientes pra preencher a imagem. Uma bosta fresca toda vez que você liga a televisão de madrugada num canal de horroshow. Talvez seja apenas isso, e portanto não tem importância, e mesmo que o soalho da casa seja um cemitério de bebês que não chegaram a ser nem recém nascidos, e daí? Qual é o problema? Estão mortos, já era! Só resta um problema (o ossinho) e duas testemunhas. - Tudo que pode ser feito de manhã fica sempre mais caprichado, afinal é só uma noite até que o único indício da terra maldita suma e então não haverá provas materiais de que ele existiu. Apenas duas testemunhas. Pela manhã desceu as escadas foi até o quintal depois que todos saíram e com uma pá pegou o ossinho jogou dentro de um saco e colocou no porta malas do carro. Só restava o último ato e o primeiro crime (isso porque ocultar uma prova não é crime até que descubram). Colocou uma faca de cozinha no bolso, tirou o carro da garagem, mas antes de fechar o portão chamou o cachorro para dentro do veículo. Trancou a porta e seguiu rumo a região do lixão onde pretendia despejar o cadáver do animal.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

No pregador

Texto e foto: Zé Beto

Um dia me compraram. Eu não sabia como cheguei àquela loja. O velho de cabelo branco me pegou com a mão direita enrugada, jogou dentro de uma cestinha, pagou, me enfiaram dentro de um saco plástico e aí fui jogado no banco de trás de um carro velho, desses que andam sacolejando. De repente estava na boca da cadela. Ela nem me cheirou. Abocanhou e me levou para um corredor lateral da casa onde havia uma nesga de terra. Vi ela cavando um buraco na terra preta. Pensei: me fudi. Ia ser enterrado vivo, ou morto, ou sei lá o que porque sou um boneco peludo que imita um... um... cachorrinho. Tem amigo meu que levou sorte. Vi comprarem no supermercado e entregarem para bebês. Eu, não! Me deram para uma cadela mimada. Sim, ela é mimada. O velho dá comida na boca, viciou-a em chocolate e ela só não sobe na mesa por falta de vontade. A cadela dorme com ele na cama de casal. Substitui, no momento da siesta, a dona da casa que foi embora. Mas, como eu dizia, a cadela queria me enterrar feito os ossos que ganha quando o velho vai a uma churrascaria. Ele sempre traz e, às vezes, quando almoça em restaurante que vende a quilo, compra comida especialmente para ela. Fui salvo porque ele veio atrás e disse para ela não fazer aquilo, que era um brinquedinho, etc. Acho que ele está tentando tirar o pecado que cometeu de nunca ter colocado a cadela para fuder com cachorros. Tanto carinho, tanta paparicação, e a cadela nunca soube o que é um pau. Por isso enlouquece cada vez mais no cio. Se deixarem, ela destrói a casa inteira. Seu principal passatempo e ficar se esfregando feito uma doida alucinada num pano sujo que enrola. Ainda bem que o velho me tira do circuito nesse período. Senão não estaria contando isso para vocês.

Acho que ele pensa que eu posso substituir os filhos que ela não teve. Coisa de doido! Acho que ela gostaria que eu tivesse um pau enorme para trepar com ela. Eu tenho forma de cachorrinho. Miniatura. Mas não tenho pau. Passou um tempo e ela nem ligou mais pra mim. Só quando aparece outro maluco, que eu nem sei quem é, mas que não gosta da cadela e que, por isso, me dá uns bicos para ela correr atrás. Se ela me prende na boca, quando me baba todo, ele tenta arrancar. Qualquer dia o maluco vai arrancar minhas pernas, ou me dividir no meio. Ainda bem que aparece pouco na casa. Mas foi ele que recomendou que o velho me lavasse. Eu era branco. Fiquei sem cor. O velho lavou e me pendurou no varal. Um pregador cor de rosa me segurou no fio de naylon. Aí acontenceu. Me esqueceram aqui. No começo doeu. Não o nariz, porque eu não sinto isso. Mas a solidão. Depois fui me acostumando, mesmo porque daqui posso ver a lua, o sol, tomar banho de chuva, etc. Já faz mais de mês que estou assim. Gostaria de ficar para sempre. Mesmo porque, tudo me irrita na cadela, principalmente o nome estrangeiro que tem.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Homicidas – Parte 1



ele só queria ver mais televisão, não programas selecionados, escolhidos a dedo, queria ver as merdas e sacanagens que passavam longamente nas tardes, do jeito que acontecia quando era criança. a putaria, a zueira toda, o gosto pela bobagem, pelo ócio desconstrutivo. não ficar se cobrando para tentar entender como as coisas realmente são, para que lado a terra vira, para onde essa maldita política economica vai levar o nosso pais. queria simplesmente sentar e olhar, paralisado como um tetraplégico em sua cadeira de rodas. queria fazer de seu sofá de apenas um lugar uma verdadeira cama, onde se espreguiçaria desconfortavelmente até encontrar mirabolantemente uma posição confortável. os canais eram trocados um a um até que encontrou o pior programa possível, o mais escroto e nele estacionou. o som do vizinho cortando a grama, os carros que passavam na rodovia, as malditas crianças que corriam na casa que era vizinha de fundo com seu prédio. tudo isso contribuía ainda mais para sua dificuldade de ficar inerte, vegetando. mas Roque não desistiu e se concentrou para permanecer oco.

o programa da TV era simples e bizarro, pessoas correndo atrás de porcos com coleiras coloridas ostentando a pontuação que o participante alcançaria se pegasse um deles. era simples. correr atrás do mamífero uivante, agarrá-lo em meio ao seu esperneio sem fim, o esperneio de morte, e colocá-lo dentro da pequena jaula de cerdas de alumínio estreitas. ao fim de sua caçada o participante, como era de se esperar estava todo sujo de lama e mantinha um meio sorriso em sua boca, um melancólico sorriso fingido, parecia estar feliz apesar de tudo. prêmios variavam entre pequenos, médios e grandes, sempre dados em cheques gigantes que não valiam nada (na verdade deveriam receber em dinheiro vivo atrás dos bastidores, mas o fato é que deveriam sempre receber muito menos do que era informado aos telespectadores).

depois de manear o controle e finalmente chegar ao ápice do tédio, tudo aquilo lhe causou prazer e para coroar este momento áureo, Roque correu ao banheiro, se trancou e concentrou-se mais uma vez para poder seu pau levantar e se masturbar e se contorcer até que gozasse e sentisse cãibra nas duas panturrilhas. lavou as mãos e o rosto e saiu sem emitir um único som. voltou a varanda e observou seu velho vizinho que aparava sua grama, cuidava de seu quintal, molhava suas roseiras e sentiu pena do velho, pois por sua aparência imaginava que não mais podia ter ereções, ou pior, nem quisesse mais tê-las. sentiu pena e ódio a ponto de querer matá-lo, de querer enfiar aquela roçadeira no pescoço rugoso do velho careca e ver o sangue esvair e a vítima agonizar até o último segundo, até que o último sopro de vida lhe saí-se pelo nariz, mas ao invés de correr e atravessar os cinquenta metros (ou talvez fosse 75 ou um pouco mais) que separavam do outro lado da rua, Roque apenas sorriu, um leve sorriso, um meio sorriso, que poderia dizer duas coisas, medo ou violência, falcatrua pura.



j.a.

coçando suas costas com os nós dos dedos, voltou e reclinou seu corpo magro novamente sobre a poltrona marrom, móvel de uns trinta anos ou mais que já tinha suas espumas e molas demasiadamente gastas para fornecer qualquer que fosse o descanso. o telefonema nunca vinha, tinha medo de que Santana estivesse adormecido e que pudesse ter esquecido que dali alguns minutos deveriam se preparar para guerra. a televisão e os porcos correndo atrás de mamíferos inocentes porém imundos por natureza não o entretinham mais. foi então que decidiu comer algo, foi até a cozinha e encontrou algumas bananas-maçãs maduras. contou-as em rodelas, colocou em uma tigela de plástico branco encardido e jogou sucrilhos em cima. leite e uma colher antes de voltar e sala e ligar o rádio que tocava uma música dos secos e molhados. logo trocou de estação, enojado por causa da viadagem e pelo tom prateado da voz do cantor. comeu rapidamente porém meditando em casa floco, seu gosto macio, suas nuances de forma, pequenas cápsulas doces e umedecidas.

cansado de esperar resolveu ligar para o comparsa, mesmo sabendo que esta era a milionésima vez que faria isso naquela tarde dominical e mesmo sabendo que a resposta seria a mesma - estou a caminho. O telefone finalmente toca, Roque atende, é Santana.

- Tudo pronto?
- Claro!
- Vamos cortar o corpo e jogar onde?
- Vamos queimá-lo, eu acho - replicou Roque.
- Ok, nos encontramos na frente do seu prédio - Santana repete a coordenada.
- Ok então!

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Aceno

j.a.


quem é o safado aqui? a conversa é aberta com esse grito interno, que pela boca passa como assobio baixo, contido. uma coisa ficou presa na garganta, ela quer explodir e quando ganha o nervo do braço esquerdo acaba em forma de murro na parede. a mão sangra e o sangue escorre, um carimbo vermelho borrado nos ladrilhos. então outro soco, com a outra mão e agora de lado, é desferido contra a mesma superfície. a força não é suficiente para romper os tecidos superficiais da pele, mas consegue quebrar em várias partes os ossos que vão do dedo mínimo até o antebraço. resta a cabeça. aguenta três golpes, as têmporas chocam contra o concreto manchado. cai inerte, sem tremer uma só vez. violência com as próprias mãos. o fim grotesco de cinco horas de gritos contidos no banheiro. repetições e mais repetições, as mesmas dezesseis letras sussurradas milhares de vezes, quicando nas paredes, no chão e no teto do cubículo com uma única luz que vem da clarabóia. violência com as próprias mãos. só quando o barulho do punho esquerdo, na queda, que acerta e quebra a base de uma das folhas de acrílico que compõe a divisão entre a área do chuveiro e a da pia/privada é que se dão conta. o aceno é secreto.



j.a.

as mãos chamam atenção, não se sabe porque.