sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Não se vive apenas uma vez

A última luz na vida daquele pobre homem se apagou muito intranquilamente naquela noite, naquela quinta feira. Toda uma vida, bipolar ao seu curso, terminara daquela maneira triste, indesejada até mesmo para o mais miserável dos seres humanos. Já não lhe era tão feliz nos últimos tempos, pelo contrário, a vida lhe parecia um purgatório, onde pagava a cada dia o que nem mesmo sabia que havia cometido, e ninguém sabe ao certo se havia cometido algum pecado tão grave para se encontrar naquela situação deprimente.
O seu nome, acredito eu, ninguém saiba ao certo qual é. Apenas era conhecido como “Profeta”, por sua longa barba. Um simples morador de rua que perambula por aquelas vielas empoeiradas daquela pequena cidade interiorana, ao norte do estado. Vivia na rua a alguns anos, tantos que ninguém pode datá-los, pois a maioria apenas se lembra que ele sempre esteve ali, como parte da paisagem do local.
Dela, da rua, extraia sua moradia, seu sustento, suas amizades, animais companheiros, cigarros, trocados para a bebida. Esta sim, depois das ruas, é sua segunda companheira, quase sempre se encontra bêbado, aqui e ali. Ai sim, seus lábios se tornam labirintos, nos quais os que se arriscavam a se aventurar pouco entendiam o que eles expressavam. Muitos acreditavam que eram profecias, por, quem sabe, levarem a sério o título conferido a ele. Pobre Profeta sujo e maltrapilho. Poucos puderam conhecer a outra metade, a metade mais colorida e feliz, e não esta que se pode classificar como a pior fase de sua vida.
Há tempos a atrás, antes mesmo de muitos de nós terem nascido, havia naquela cidadezinha, um senhor, muito culto, cheio de vida e voracidade quanto aos negócios. Grande e bem sucedido fazendeiro daquela região. Dominava e administrava com mãos de ferro seus empregados, seu dinheiro, seus filhos e tudo que lhe pertencia. Quem o via e conhecia sabia muito bem quais eram seus traços de personalidade, e o respeitavam, e dele tinham ótimas expectativas. Parecia que a era de reinado a frente dos assuntos políticos e econômicos daquela região se estenderiam por longos anos. Isso se dava com maior veemência sabendo que era jovem e poucas rugas de cansaço lhe haviam tomado a face.
Porém, muitas e muitas vezes a vida, é sim, ela mesmo, nos prega inacreditáveis peças, da reviravoltas tão radicais que parecem causos impossíveis, como aqueles contados a beira de uma mesa no fim de uma festa ou mesmo em volta de uma fogueira de acampamento e até mesmo nas mentirosas rodas de amigos. E nestes casos, conhecendo e vendo como a corda rebentou no lado mais fraco tudo fica mais claro.
Com aquele fazendeiro poderosos e influente, que mantinha tudo em grande equilíbrio e controle, não fora tão diferente. Um pouco surpreendente, mais nada que já não ouvimos por ai.
Sua querida e amável esposa, modelo de mulher. Tinha um defeito, pequeno, e que ao longo dos anos tornou-se sua desgraça, ou melhor, a desgraça de seu esposo, fiel e dedicado. A inconstante vontade de ser e ter mais, não satisfazer-se com o que tinha, e por mais que tivesse cada vez mais não lhe parecia suficiente. Quanto mais se tem mais se deseja ter. Mas isso cresceu sem que ninguém percebesse.
Enquanto este desejo se restringiu apenas às coisas materiais, quase não foi um grande problema, dinheiro ali era o que não lhe faltava. Contudo, seus olhos se desviaram para o lado de fora da cerca de seu compromisso matrimonial. Em pouco tempo, seu marido não lhe satisfazia mais, queria experiências mais empolgantes, mais quentes, diferentes do que sentia dentro de casa.
Debaixo dos olhos do pobre homem, ela o enganou, roubou, não apenas seu dinheiro, mas suas propriedades, seus filhos, sua vergonha, sua vontade de viver, sua dignidade. O deixou só, sem rumo, sem nada. Ele pagou seus pecados ao acreditar que o fundo do poço era o fim, que se poderia viver apenas uma vez. O golpe foi tamanho grande e repentino que coagiu qualquer potencialidade de reação. Tornando aquele vigoroso e determinado homem, num submisso, sujo e desgraçado ser. Assim nada lhe importava, vivia por viver. Encontrou nas ruas, na bebida e nos sarnentos cachorros seu lar. A bebida era seu anestésico assim como para tantos outros.
Ali poucas horas de seu fim, naquela quinta feira, eu ainda o vi, sentado naquele posto de combustíveis, em uma cadeira vermelha próximo a porta do banheiro. Estava muito sujo e seu cheiro podia ser sentido a uma certa distância. Com uma calça preta, rasgada, uma camiseta vermelha de gola, com marcas pretas, me parecia sangue coagulado. Cabelos e barbas compridas. Conversei por alguns minutos com ele, mas conversar não bastava, tremia de frio e de fome. Comprei algo para que ele comesse, e também consegui um agasalho para ele. Ao perguntar se lhe faltava algo, como quem diz “está melhor agora”, ele surpreendentemente me responde, “um cigarrinho e uma cervejinha ia bem meu senhor”. Pobre homem, mesmo sabendo que aquilo lhe faria mal a saúde, não resisti e comprei-lhe uma carteira de cigarros, uma caixa de fósforos e duas garrafas de cerveja. Seu sorriso amarelado e incompleto foi meu obrigado.
Foi a última vez que o vi. Ou melhor, o vi com vida. No dia seguinte, acompanhando o jornal do meio-dia, algo me surpreendeu e me deixou muito abalado. O Profeta havia sido friamente assassinado. Segundo a nota do jornal, um rapaz lhe pedira cigarros, e o coitado negando-lhe, pois talvez não pudesse imaginar quando receberia tal regalo novamente, recebeu cinco golpes de tijolo no rosto, falecendo cruelmente naquele mesmo momento, sobre a calçada, próximo ao posto de combustíveis, onde eu o vira pela última vez com vida. O rapaz foi preso, mais logo solto, afinal matar um indigente, para aquela comunidade teria soado até mesmo como um favor.
Sua vida foi desgraçada pela arrogância e o roubo, e mesmo quando nada tinha, o pouco que lhe restava ainda mediante a sua morte foi lhe tirado. Mas Profeta lutou sem forças. Entregou-se, pagando seu único pecado, o de acreditar que se vive apenas uma vez. Desacreditado no recomeço. Talvez a culpa tenha sido minha. Talvez não. O preço talvez tenha sido alto demais.


N.A.: Este texto é uma obra de ficção.

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