sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Teto preto

Ciudad Juarez







naquela noite o menino teve alguns sonhos. ele conheceu alguns filósofos, antigos escritores, um russo e o outro alemão, os dois com seus respeitosos bigodes e ele se incomodava com eles, achava antiquados demais. mesmo com esse asco, ele não correu dos velhos escritores, ele permaneceu próximo, observando caninamente como se movimentavam, como conversavam. o menino não sentia nenhum tipo de simpatia por eles, apenas os observava para quem sabe descobrir o que pensavam e então como agir diante disso. então os dois começara a falar sobre suas pretensões para o futuro vislumbrando como conseguiriam viver, como seria o mundo se as crianças de hoje estavam perdidas em ilusões coloridas. então o menino que se sentia ofendido com aquelas palavras continuava olhando e eles permanecia impávidos conversando. sem prestar atenção na música que os rodeava, estavam quase perdendo sensibilidade no tom. o menino então mergulhava num sono obscuro e ficava lá por um tempo que ele nunca conseguia determinar, apenas se dava conta de si novamente quando já estava dentro de outro sonho, outra narrativa curta. os cinco segundo mais alongados de todos os tempos. e dessa vez o lugar era menos escuro, mais suave. era um lugar aberto, um descampado por onde se estendia uma gramado ondulado que ia até uma linha infinita a sua frente. o sol era forte de modo que boa parte da paisagem se via em pequenos recortes feitos no tempo do abrir e fechar de pálpebras para proteger o globo ocular. dessa vez o menino falou, mas o diálogo foi rápido, ele disse não mais que seis palavras. ela disse três, certeiras... um medo crônico que se dissipou em não mais que um segundo e o menino quis olhar de novo e ela estava lá, sem desviar o olho. que recorte, que pintura. e então veio mais algum tempo de escurecimento, de teto preto, de saco de areia pesando nas costas e ele aparecia em outro, num cenário novo, e dessa vez foi menos verossímil do que as demais, ele demorou mais tempo para descobrir onde estava e quando foi tateando o olho devagar viu um guarda-roupa marrom e depois viu outro igual do lado, então sentiu as costas e viu a cama, era o quarto. pisou nos chinelos, andou dois cômodos até a cozinha e bebeu dois copos de água. nesse mundo existe muita confusão, pensou. votou a dormir até as 6h00 da manhã pra acordar e andar de bicicleta.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Rodinhas de gel

foto: Roberto José da Silva

com seu patinete por uma ladeira que chega à ponte do rio, o menino vai sem medo da descida. ela sempre parece mais perigosa na boca dos outros. no fundo ele sabe que algumas dessas insinuações, sobre o perigo que existe naquele descida, são reais, só não são tão alarmantes como dizem. então ele vai, com as rodas de gel tocando aquele asfalto fumegante, é verão, inicio do verão. a temporada de chuvas ainda está um pouco distante então ele aproveita todos os dias para descer com seu veículo de duas rodas pequenas. ouvindo uma música agressiva ele desce sem medo. nas laterais de sua visão está o bolsão esquecido. casebres velhos, lixo nas calçadas, pessoas que dormem por ali, em plena luz do dia com seus cobertores maltrapilhos e cheios de fedor e ácaros. dermatoses salientes, manchas na pele, é meio assustador e fedorento. existe a possibilidade de o nariz acostumar. o menino tranca a respiração toda vez que passa por alguns trechos da descida. é involuntário, ele vê ao longe a carniça e calcula sempre o tempo certo para simplesmente respirar fundo e trancar a respiração em seguida, é discreto, não desperta o olhar dos zumbis que por ali vagam, nessa chapada ensolarada, nessa ladeira com ar comprimido entre as fileiras de sobrados mal construídos, obras inacabadas e toscas, asfalto cinza com faixas amarelas e lixo pra fora dos sacos pretos, espalhado na rua, cheiro de zumbi espalhado, vagando, errante. essa descida tudo isso abriga e de tudo isso é feita, não adianta andar três quadras a dentro, para a esquerda e para a direita, vai ser a mesma merda, o mesmo cheiro e a mesma paisagem, mudam apenas as cores do acabamento das paredes. o menino desce, seu ponto de chegada é no fundo de vale, onde passa o rio, mas ele não quer se molhar, quer apenas olhar a água suja de cima da ponte. água fedorenta. o rio está assoreado, quase morto, talvez nem mereça mais o título de rio, é apenas um canal com leito esfalecendo. são no total duas pontes, uma na rua principal, outra uns duzentos metros de distância, servido de assistente a uma estrada paralela que leva aos prédios ricos da face sul da estrada. pela via principal não se pode acessá-los. uma grade está instalada para que os zumbis desbotados não entrem. antes é necessária a triagem pelo portão vermelho/bordo com arestas verdes. o menino pela centésima vez faz o trajeto e se sente tranquilo como em todas as outras. cruza um ou dois zumbis, os encara, olha no olho, mesmo que isso não seja possível. os olhos dos zumbis que habitam essas redondezas são rápidos estão sempre em movimento. mas mesmo com essa variante somada a velocidade que o patinete ganha a cada segundo, o menino encara pelo menos dois ou três dos zumbis errantes. não todos que cruza é claro, ai seria querer sofre e se aterrorizar demais. ele se fixa em poucos e suficientes. a experiência é proveitosa quando se sabe o momento de parar, o momento de se abster. ele então despreocupadamente chega ao fundo do vale e lá se sente diferente mas ao mesmo tempo igual, talvez seja essa a sensação causada pelo costume, ele se acostuma com o ambiente, a descida é pegajosa o suficiente para lhe causar algumas impressões e ele se acostuma com o ambiente, com o clima e com o cheiro mesmo sabendo que vai sair daquele lugar dali alguns instantes. não se sabe ao certo, mas ele talvez deseje degustar aquela descida. quando atinge o fundo de vale e vê a planície que se constitui nos próximos metros da rua, ele sente o patinete ir perdendo velocidade e então a frenética descida chega ao fim e da espaço a um caminhar mais calmo. os prédios grandiosos cercados de grades e com acesso e ponte exclusivos que por ventura poderiam ser seu objetivo inicial antes da descida, antes de todas as vinte vezes que fez esse trajeto na área dos zumbis, agora são quase passado, ele vê que no fim daquela planície ainda existe asfalto, aquele lugar já não é tão distante como parecia, a rua ainda é pavimentada. quando vê que suas rodas de gel estão desgastadas pelo sol e pelo calor, mas não tanto como esperava, percebe que é hora de rodar mais um pouco a frente e ver no que vai dar isso. ele então sente um leve gosto de deixar sua adorada e fedorenta descida para trás e ver o que tem atrás da planície no fim da rua. finge que não ouve a mãe chamar, ele não quer voltar para casa agora. e segue então para explorar cinco ou dez quadras que existem pra frente do fim da rua. ele se sente um explorador urbano, então toma uma decisão, vai correr até onde as duas rodinhas de gel aguentarem.