quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

A Solidão de Um Menino - Parte 6


Rossinho e seu tio se apresentam formalmente pela primeira vez. O tio sensibiliza-se com o menino e o alimenta.
O homem que havia se retirado, o tio de Rossinho, chegando até a sepultura de sua mãe, e vendo o menino ali, dormindo na grama molhada ao lado da tumba de sua avó, compadeceu-se dele como nunca. Mesmo sendo um rude lavrador, ainda assim carregava em si uma carga de sentimento, que naquele momento aflorou e mostrou que ali ainda existia sensibilidade, mesmo que um pouco. Pegou, então, no braço esquerdo do menino e o levantou. No momento em que despertou, Rossinho puxou seu braço e se afastou repentinamente. Os dois se olharam por alguns momentos, o homem com semblante mostrando amizade, o menino muito assustado. – Cê ta com fome – perguntou o homem, - não senhor. – respondeu o menino. – Tem certeza, desde que chegamos ontem cê não comeu nada, só ficou por ai calado, tem que comer algo! – Neste momento Rossinho olha para o chão em atitude de submissão e balança a cabeça para cima e para baixo em sinal de que aceitava o convite de seu tio. Neste momento o homem olha para a sepultura, sem lápide ainda, e diz em voz baixa, quase para dentro – é mãe, vamos fazer a sua vontade, mesmo não sabendo ao certo qual era, descanse em paz – volta para o menino e pergunta-lhe – você amava mesmo sua avó? – e Rossinho, olha para o lado, coça o rosto, franze um pouco a testa e responde simplesmente que – agente se dava bem – Seu tio vira novamente e sai andado devagar, faz um sinal para que o menino o siga.
Após alguns passos, Rossinho puxa a roupa de seu tio, como quem pede uma parada. Ele para, pergunta o que foi, e o menino diz com um ar altivo – eu não quero entrar lá de novo, não quero ver aquelas pessoas, se for pra comer, como aqui fora ou nada!! – Sem nem mesmo tentar contrariá-lo, seu tio aceita a exigência. Nem mesmo ele queria ver aquelas pessoas, a atmosfera lá dentro estava muito carregada, o egoísmo, avareza e a ganância formavam uma densa fumaça no ar. Após alguns poucos passos, o homem se volta e pela primeira vez pergunta o nome do menino, ele levanta a cabeça, estufa o peito e diz – Setembrino Rossi, mas pode me chamar de Rossinho, era como vó Isabel me chamava – então, demonstrando interesse por sue bem feitor, o menino pergunta o nome dele, - João Gomes Rossi, mas pode me chamar de Jango, é meu apelido também, sua vó me chamava assim quando tinha a sua idade – dito estas palavras, vira-se em direção a casa.
Entrando na casa, Jango vê que aquela discussão ainda não cessou. Mal entra, já lhe interam do novo assunto. Primeiro fica feliz de perceber que todos chegaram à conclusão de que aquelas terras deveriam pertencer ao garoto. Porém, quando chegaram à parte do tutor, logo percebe que as negociações ainda mantêm o tom ganancioso. Apesar de o assunto ter mudado plasticamente, sua essência era a mesma.
Desconversando, Jango passa diretamente para a cozinha, não justifica a ninguém o que estava indo fazer, poderiam achar que ele levava comida ao garoto com segundas intenções. Chegando a cozinha, revira os velhos e empoeirados armários, depois vai até a pequena dispensa, divida da cozinha por uma cortina com estampas de flores, de cores muito vivas, mesmo desbotadas pelo tempo. Lá, assim como nos armários não encontra nada. Indaga a si mesmo se sua mãe não morrera de fome. Mas não, quando chegaram, às panelas ainda estavam sujas, pouco antes de morrer havia comido sai última refeição. Assim tinha comido tudo que restava, pois não sobrara mais nada de reservas na casa. O que faria para Rossinho comer? Pela porta dos fundos mesmo, saiu da casa. No terreiro cercado atrás da casa existia uma horta e um galinheiro, este último era dividido em duas metades. Numa, algumas codornas e noutra umas poucas galinhas e um galo. Primeiramente pensou e matar uma daquelas galinhas e fazer delas um cozido. Quando entrou no galinheiro para escolher a galinácea, viu alguns ovos. Concluiu então que poderia apenas cozinhar os ovos. Seria mais rápido, e faria menos alvoroço. Foi o que fez.Dirigindo-se até onde Rossinho se encontrava, com um prato de alumínio numa mão e na outra um copo médio. O menino estava sentado um pouco adentro do bosque, a sombra de um pinheiro. Chegando perto dele, Jango lhe entrega o prato com quatro ovos cozidos e o copo com água. Os dois não trocam uma palavra se quer. Rossinho engole rapidamente os ovos cozidos sem tempero e toma num gole só toda a água do copo. Estava com muita fome. Jango olha feliz, a cada momento sente mais simpatia pelo menino, vê nele traços marcantes de seu irmão. Os observa um a um, isso provoca um forte sentimento de saudade daquele jovem rapaz que fora tão cedo embora.
Continua...
N.A.: Faltam apenas dois capítulos para o desfecho da história.

sábado, 26 de janeiro de 2008

A Solidão de Um Menino - Parte 5

O início das discuções
A noite chega, todos os familiares vindos até a casa para o velório e enterro de Dona Isabel permanecem ali para resolver alguns problemas. Na verdade dois problemas bem particulares. Quem ficaria com a propriedade e quem ficaria com o garoto. A discussão começa.
A propriedade era muito valiosa, tinha uma área onde se poderia cultivar a terra, uma área de bosque, ótima para o descanso e que proporcionava uma boa sombra a casa, e talvez a melhor característica, ficava a beira do Rio Negro. A parte do rio que passava pela propriedade era bem larga, e se afunilava corredeira a baixo, eram águas correntes, muito limpas. Servia tanto para a extração de água para suprir necessidades diárias como também para o lazer. Ainda havia uma velha bomba que trazia água das corredeiras até a casa, que ficava um pouco longe da beira do rio. É, realmente era uma propriedade de muito valor, porém não muito extensa, o que tornava impossível ser divida em partes. Sendo assim quem ficasse com ela, teria de ficar com toda sua extensão. Isso agrava mais ainda a problemática e a discussão.
Enquanto todos passaram a noite em volta da mesa discutindo o problema da herança, Rossinho permaneceu lá fora, no bosque, perto da sepultura de Dona Isabel. Durante as longas horas que ficou ali, pensou em varias coisas. A que mais lhe incomodava era a maneira como sua avó tinha morrido. Será que fora de velhice mesmo, ou algo de ruim teria acontecido com ela? Neste momento começou a remoer-se. Talvez se ele estivesse ali, em companhia dela sempre, mesmo que ela não se importasse com isso, poderia ter evitado sua morte? Talvez ele tivesse sido a causa de sua morte? Talvez ela se importasse de ele estar distante, somente não demonstrava isto, e poderia assim ter causado sua morte por desgosto? – Não, não, acho que isto não – disse a si mesmo. Mas e se fosse? Aquelas dúvidas não paravam de incomodar aquele menino em mais um de seus momentos introspectivos.
O dia estava quase raiando, e ainda os parentes, lá dentro da casa, ainda discutiam e não chegavam a lugar nenhum. Uns sentados na mesa, outros andando em volta dela, outros ainda lá fora, fumando seus cachimbos, mascando fumo e cuspindo muito. Rossinho continuava lá fora, agora dormindo na grama molhada. Seu nome sequer havia sido citado nas discussões até aquele momento.
Porém, aquele senhor, o irmão do meio do pai de Rossinho, aquele que fora procurá-lo na mata e o encontrara e trouxera até o local do velório fez uma proposta, algo que traria uma possível resolução aquele dilema. Levantou-se, chamou a todos, os de dentro e os que estavam lá fora. Enquanto todos entravam, permaneceu calado. Somente no momento em que todos estavam dentro da casa, e envolta da mesa ele começou a falar. E disse mais uma vez rapidamente e com poucas palavras, - O legítimo herdeiro desta propriedade é o menino! Todos se espantaram percebendo razão naquela afirmação. Porém suas mentes se mostravam relutantes a ela. O senhor alto, continuou dizendo, - Este menino, foi o único companheiro de nossa mãe nestes últimos anos. Nós já somos adultos, temos nossas próprias casas, nossas fazendas, nossos empregos. Ele não tem nada, e o pouco que sempre teve ainda iremos tirar dele? Acho que este seria o desejo de nossa mãe, peço a todos que respeitem isto. – Após dizer estas palavras, retirou-se daquele recinto, foi para fora da casa, em direção a sepultura de sua mãe.
Após a saída do irmão, todos os outros reiniciaram a discussão, agora com outro foco, refletindo nas poucas palavras que ele tinha dito, e na razão que elas tinham. Quando quase consentiam de que aquela era a melhor e mais acertada decisão, um deles apontou outro problema. Como poderiam eles, confiar uma propriedade como aquela, que necessitava de certos cuidados, sendo que não passava de um garoto de dez ou onze anos? Como ele se manteria seguro ali, como comeria, limparia sua casa? A solução mais correta, levando em consideração a hipótese de que a propriedade ficasse com ele, era escolher um tutor, para assim poder administra tudo até que ele tivesse idade. E assim iniciou-se mais uma vez a briga, para resolver que seria este tutor. Claro que nenhum deles se importava verdadeiramente com o menino, no fundo queriam mesmo era ficar com as terras, e desta história tirar algum lucro.
Continua...

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

A Solidão de Um Menino - Parte 4

Rossinho encontra sua avó morta. O velório e enterro de dona Isabel.

Caminharam por alguns quilômetros, o homem a frente e o menino atrás. A estrada é um pouco longa. Após saírem da mata fechada, entram em um pequeno bosque, próximo ao Rio Negro. Neste Bosque as árvores estão com uma distância maior entre si. No meio dele se encontra uma trilha de terra, por onde os dois caminham agora mais rápido por haver menos obstáculos. Após a rápida passagem pelo bosque chegam à estrada de terra. Mais alguns quilômetros e entram em um outro bosque, este é menor, é o que envolve a casa da falecida Dona Isabel. Ao se aproximarem da casa Rossinho vê alguns cavalos amarrados em uma árvore a poucos metros da casa. Eram alguns cavalos apenas, mas ele nunca havia visto tantos reunidos. Por ali brincavam algumas crianças. Meninos e meninas, todos bem vestidos, usando até mesmo sapatos, coisa que ele só vira nos pés de adultos. Ao lado da porta da casa um menino franzino, muito bem vestido, com um chapéu preto e um peão na mão, olhava fixamente para o chão. Com a ponta inferior do peão desenhava no solo uma cruz. Parecia muito triste, e ali permanecia isolado, enquanto as outras crianças brincavam alegres, sem se dar conta da realidade, ou mesmo sem entendê-la.
Rossinho entrou na casa. Todos os olhares se voltaram para ele naquele momento. Sua imagem era bizarra demais e chamava muito a atenção. Não apenas pelo visual, mas também pelo cheiro que dele exalava, um fedor muito forte. Aproximou-se do caixão, com sua corda de cipó enrolada ao corpo e sua lança rupestre nas mãos. Um verdadeiro selvagem perante os homens, mulheres e crianças bem vestidos e cheios de cerimônias formais durante os processos de relacionamento. Ele pouco se importava, na verdade era imune aqueles olhares, pois a inocência o impedia de agir maliciosamente e assim decodificá-los.
Olhando para sua avó ali deitada, imóvel, com a pele pálida e o tórax levemente inchado, Rossinho teve sua primeira reação de pesar. Mesmo que dela tivesse apenas algumas boas e restritas lembranças, mesmo que por ele pouco fizera durante sua vida, ainda assim era a única que algo tinha feito, por isso então lhe devia algum respeito. Até mesmo este resquício de educação e decência que o levava a ter tais pensamentos eram provindos da pouca educação recebida dela, de sua avó.
Espontaneamente, algumas lágrimas fluíram de seus olhos. Poucas e tímidas gotas. Tão tímidas que ninguém as percebeu, apenas ele. Secou-as e caminhou até os pés de Dona Isabel. Ali, segurou-os por alguns segundos, virou-se e se retirou. Assim como muitas outras coisas em sua vida, sua dor também era solitária, sua retirada para fora da casa não era por vergonha, mas sim por necessidade, a necessidade da solidão, muito mais do que os outros. Sua dor era sincera, por isso solitária.
Lá fora, sentou-se num tronco de árvore cortada, próximo a janela direita, na frente da casa, onde costumava ficar depois do almoço. Com sua lança riscava o chão, eram apenas rabiscos, o pouco que aprendera na escola, já se esquecera de quase tudo. O inconstante e tempestuoso menino, agora constituía um semblante triste e submisso. A única pessoa que um dia havia se importado com ele, mesmo que quase nada, se fora. Mas entre zero e um, mesmo o pouco é melhor do que nada. Agora tinha de se acostumar verdadeiramente com a idéia da solidão, o pouco de companhia humana que lhe restava não existia mais.
Após algumas horas, os parentes todos resolveram que já bastava de velório e era chegada a hora do enterro. Fecharam o caixão. Alguns homens se aproximaram, pegaram-no pelas alças e começaram a marcha fúnebre, que se seguiria até o interior do bosque, onde a enterrariam juntamente com o patriarca da família, o marido e Dona Isabel. Ao passarem pela porta, o menino viu o cortejo e permaneceu sentado por mais alguns minutos, até que todos passassem. Quando já estavam a uma pequena distância, começou a segui-los, porém sempre de longe.
Quando chegaram ao local do enterro, a cova já estava aberta. Ao lado, terra fresca recentemente mexida, tirada de seu lugar. As várias lápides mostravam que aquela família ocupava a região há muitas décadas. Antes de colocarem o caixão na cova, o filho mais velho da senhora disse algumas palavras. Enquanto as dizia vagarosamente raciocinando bem em cada uma delas antes de lançara para fora da boca, uma fina e tranqüila chuva inicia-se. Todos se apressam inclusive o orador. Enterram rapidamente a senhora e correm em direção a casa para abrigarem-se. No momento do recuo, todos passam por Rossinho, olhando-o duramente. No momento em que ele desvia o olhar da cova de sua avó e o cruza com os de seus parentes, eles rapidamente o direcionam para o chão. Todos chegam na casa, menos o menino, menos o solitário Rossinho. Ele permanece lá próximo a cova, agora completa com o caixão e a terra.
Continua...

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

A Solidão de Um Menino - Parte 3

A busca por Rossinho e seu retorno para casa.

Estava em cima de uma árvore quando avistou ao longe uma movimentação. Teve medo, mas logo tratou se aproximar para ter certeza do que era. Correndo pelo flanco direito e dando a volta no objeto que se movimentava, Rossinho atingiu certa altura que o deixava nas costas do ser que caminhava pelas suas matas. Era um homem alto, que abria caminho com um facão longo, com botas, luvas e chapéu enormes, com uma postura ereta, algo que lhe conferia ainda mais imponência perante a posição arcada e quase corcunda do menino. O homem era seu tio, irmão do meio, poucos anos mais velho que seu falecido pai. Mas esta era mais uma informação que Rossinho não tinha. Para ele provavelmente era um caçador, ou mesmo algum enviado pela escola rural, para encontrá-lo, levá-lo de volta para que fosse castigado.
Aquele senhor de meia idade, muito experimentado em caminhadas por matas fechadas, logo percebeu que algo o seguia. Quem sabe um feroz animal, ou mesmo um cervo que poderia matar e levar até os outros que ainda se encontravam no velório, para assim agregar algo mais no jantar, no momento nem lhe passou pela cabeça que poderia ser, de fato, o menino. Assim, calmamente foi abaixando-se, até que ficasse escondido atrás dos pequenos arbustos. Rossinho perdeu seu alvo de vista. Mesmo conhecendo muito bem aquele lugar, ainda era um jovem menino e ficou com medo. O que aquele homem queria ali? Será que estava atrás dele realmente? Mesmo que não quisesse fazer nenhum mal ao menino, o estilo repulsivo e tímido de Rossinho o impediam de ter algum contato. Agora que tinha perdido de vista o homem, concluiu que ele o faria algum mal.
Ambos se preparavam para um possível embate. O garoto tinha uma pequena vantagem, conhecia seu alvo. Logo o homem, robusto, forte e armado poderia valer-se muito mais de seus predicados. Os dois permaneceram imóveis por alguns segundos. E como um lapso de consciência o homem resolveu identificar a presa antes de atacá-la. Talvez pudesse ser o garoto que procurava. Se fosse, porque o seguira em silêncio ao invés de identificar-se de uma vez? Mesmo assim seria mais prudente perguntar antes de consumar o ataque.
Então ele gritou – Menino! É você? Neto de Dona Isabel? – Em silencio o garoto permaneceu. Mais uma vez homem grita – Responda rapaz, é você? O que faz aqui escondido? – Mesmo assim Rossinho permanece em silêncio. Apenas se levanta, olha para esconderijo do homem. O senhor percebe que realmente o ser que o seguia era o menino. Um semblante assustado e todo sujo, com cipós em volta do corpo, como se fosse uma corda. Numa das mãos um pedaço de madeira, com uma das extremidades pontiagudas, em forma de lança. O homem percebe que fazia alguns dias que menino se encontra ali. E supõe que nem mesmo da morte de sua avó ele tinha conhecimento. Um homem rude, com pouca educação, criado nos mais escondidos confins daquela região tem pouca sensibilidade. Assim sem se preocupar com a reação do menino foi direto ao assunto e disse de maneira rápida e curta que sua avó estava morta.
Para o espanto dele, o menino se manteve calmo, como se aquilo afetasse pouco sua vida. O olhar de indiferença, quase que dando com os ombros, acentuando ainda mais sua reação causaram espanto no homem. Não culpou o menino por isso, apenas o convidou para que o acompanhasse até a casa de sua avó para assim dar um último adeus a ela e rever alguns de seus parentes. Depois disso poderia fazer o que quisesse.
Rossinho retrucou dizendo que não tinha nenhum parente fora daquela mata. E questionou a vinda do homem ao seu encontro. - Porque fizeram isso somente agora? - durante muito tempo ninguém se importara com ele. Mas mesmo assim, ele aceitou o convite e foi junto com o homem que revelou a ele ser irmão se seu pai. Mais uma noticia que não lhe causou nenhuma emoção. Irmão de um pai que ele nunca conheceu, nem mesmo havia visto seu rosto um dia.
Continua...
n.a.: o próximo capítulo é muito importante para a trama, não perca!

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

A Solidão de Um Menino - Parte 2

A fuga de Rossinho. A morte e o início do velório de Dona Isabel.
Já havia passado uns três anos e ele ainda estava na primeira série e não tinha aprendido a ler ainda. A idade mais avançada do que a de seus colegas de turma lhe conferia mais uma característica para agravar ainda mais seus problemas de relacionamento. Tornara-se o “valentão” daquela pequena escola rural, constantemente arrumava confusões e batia nas crianças menores. No momento em que a responsabilidade sobre os atos aparecia, quando tinha de ir à sala da diretora explicar-se, corria e pulava a cerca pela lateral esquerda do pátio e sumia para dentro de uma pequena floresta que ficava naquela direção. Corria bastante até chegar numa clareira, onde havia algumas pedras bem grandes que ficavam ao sol durante a manhã e a sombra durante a tarde. Ali ficava horas e horas deitado olhando para o céu, tentando desvendar o que as nuvens diziam através de suas formas diversas.
Descobrira ali seu lugar, seu castelo, seu esconderijo. Sempre que tinha problemas corria até lá, chegava ofegante e deitava sobre as pedras. Com o tempo passou a ficar mais ali do que em qualquer outro lugar. Correr pela extensa área de vegetação nativa lhe conferiu um grande conhecimento da natureza e da biodiversidade daquela região. Conhecia como ninguém os costumes dos animais, das plantas e com eles mantinha um bom relacionamento. Conversava com as árvores e com os pássaros. Conversava mesmo, os entendia de verdade. Eram seus pais, e ele seu filho.
Em pouco tempo já havia construído ali uma pequena cabana, com galhos e cipó. Com a chuva aprendeu a fazer valetas em volta de seu novo lar. Descobriu que ali mesmo podia conseguir seu alimento, sua vestimenta e proteção. Passou a amar aquele lugar e prometeu a si mesmo que nunca mais sairia dali, que passaria o resto de seus dias naquela cabana em companhia de seus amigos do bosque. Agora não era mais só, estar ali junto de seres os quais não demonstravam nenhum preconceito contra ele era muito bom e o melhor, ele percebia isso, sentia como estar ali fazia diferença. Neste lugar estava em paz, seu espírito lentamente começava a aquietar-se, ficava a cada dia mais manso.
Dona Isabel faleceu. E seus filhos vieram até sua casa para fazer o velório, um modesto velório. Seria realizado ali mesmo, na casa da velha senhora. Prepararam então o local, o corpo dela e também a si mesmos e seus filhos, várias crianças todos netos de Dona Isabel. Quando tudo estava pronto, e já estavam a velar o corpo, um dos filhos da velha senhora lembrou que na última vez que a visitara há alguns anos, um menino sardento com orelhas em abano e muito calado morava ali com ela. Comentou com alguns parentes e um deles refrescou a memória de todos. Era o único filho de seu irmão mais novo, que havia sido morto na guerra há anos. E depois de chegada a notícia a mãe do garoto o havia abandonado, assim sendo dado aos cuidados de sua velha mãe, a avó do menino. Mas pouco o conheciam, pois pouco visitavam aquele lugar. Apenas de vista algumas vezes, e a história fora muito comentada na época, porém logo esquecida. Todos se perguntaram do possível paradeiro daquele menino. Talvez tivesse tão triste com a morte a avó, que poderia ter ido pranteá-la a sós, quem sabe. Todos se perguntavam, e logo resolveram procurá-lo pelas redondezas. Afinal, Dona Isabel deveria gostar muito de seu companheirinho, e certamente seria de seu gosto que ele estivesse ali presente naquela despedida.
Na verdade Rossinho nem mesmo tinha consciência da morte de sua avó. Fazia alguns meses que não retornava a casa dela. Passava às vezes mais de quatro ou cinco meses sem voltar para visitá-la. Nem ele, nem mesmo ela se importavam muito com isso. Assim sendo, em seus planos só a visitaria dali algumas semanas.
Continua...

sábado, 12 de janeiro de 2008

A Solidão de Um Menino - Parte 1

Ler era seu maior problema. Não era por má vontade, tinha um sério problema com as palavras. Desde criança teve problemas de aprendizagem, por isso ficou pouco tempo na escola. Naquela época quem apresentasse esses tipos de dificuldade era duramente recriminado. A professora tinha todo o direito de reprimir e castigar os alunos. Coitado, ele era o que mais apanhava. Sempre. Era, assim, o mais revoltado e desordeiro. Um Menino branco, baixo, com sardas no rosto, cabelos negros e orelhas em abano, seu nome era Setembrino Rossi, mas era chamado somente de Rossinho. A professora, uma senhora negra de olhos duros e diretos, que não se valia de meias palavras, sempre ia direto ao assunto e tinha uma satisfação constante de acabar com o dia do menino sardento e “sarnento”.
O relacionamento dos dois sempre foi difícil. Ela não entendia que bater só dificultava mais ainda as coisas e o deixava cada vez mais distante do aprendizado. Disso ela não queria nem saber, achava que era pura “sem-vergonhice” de um moleque mal criado.
Literalmente mal criado. Rossinho estava aos cuidados de sua avó desde os dois anos de idade. Não que a senhora o tratasse mal, isso entenderemos mais a frente.
Naquela conflituosa década de 40 do século passado ele nascera. Logo após o nascimento, seu pai, um jovem agricultor que morava na divisa do estado cultivando terras alheias, fora enviado por seu país a uma guerra em terras distantes, além do mar. De lá nunca mais voltara. Dele a família demorou a ter notícias. Após dois anos do embarque, um telegrama chega a sua casa. O conteúdo daquela correspondência era muito terrível, porém já imaginado. O pai de Rossinho estava morto. Esta notícia lançou a mãe do menino num enorme abismo de depressão, mesmo após tanto tempo ela amava seu marido e por ele esperava todos os dias. Esta depressão foi tamanha, fez com que ela rejeita-se até mesmo seu próprio filho, que tinha apenas dois anos de idade e que nunca havia nem mesmo visto seu pai.
Agora abandonado no mundo, órfão de pai e rejeitado pela mãe, o futuro de Rossinho era, de certa forma, incerto. Seu avô materno resolveu então levá-lo até a sogra de sua filha, a avó paterna de Rossinho. Partiu numa manhã fria e nublada, com o menino nos ombros. Esta foi a última vez que o garotinho viu sua mãe, nunca mais o veria, foi como um segundo parto, separados para sempre. O avô caminhou por dezessete quilômetros até a casa de dona Isabel Carvalho. Chegando lá, se deparou com uma velha casa de madeira, com frestas medias entre uma tábua e outra, era toda rodeada por um pequeno bosque. Encontrou a Dona Isabel sentada próxima a casa. Entregou o menino a ela e sem dizer nada saiu. Dona Isabel entendeu o que aquele gesto significava, o aceitou, porém não sabia por onde começar. Esta senhora de setenta e poucos anos, analfabeta e com as vistas cansadas, pouco podia fazer pela a educação do menino. Quando era ainda indefeso e não conseguia nem mesmo comer sozinho ela o matinha sempre dentro de casa e o alimentava mal, afinal a pobre mulher dispunha de recursos escassos. Logo que pode se virar sozinho, Rossinho foi mais uma vez largado, de uma forma mais eufêmica, mas ainda assim concreta. Sua avó não lhe cobrava muitas satisfações, na verdade quase nenhuma. Fazia o que queria. Ele tinha apenas seis anos quando estas coisas se deram.
Daí para frente, o menino transformou-se. Foi moldado pela solidão, pelo abandono e pela falta de limites. Se tornando cada dia mais anti-social. Estes fatores se mostraram muito presentes no momento que ingressou na escola. Esta entrada para uma primeira vida social de contatos constantes com outras pessoas foi de modo ainda maior traumática para o menino. Nesta oportunidade mostrou automaticamente seus traços repulsivos e autistas. A escola o recebeu da mesma maneira que fora recebido todas às vezes de sua vida, isolando-o e o abandonando. Isso foi muito duro, assim como das outras vezes. Ele estava criando uma forte casca, que com o tempo seria impossível transpô-la para salva-lo de si mesmo.
Aquela senhora a qual fora confiada à educação daquela classe não podia compreender o menino. Não conhecia sua vida longe dos cercados de madeira e arame da escola. Detinha-se a surrá-lo por suas ações grotescas e diminuía ainda mais as chances que ele poderia dispor. A culpa por aqueles atos não era de modo algum dele. Ninguém pode dar o que não possui. Se o menino era maldoso, individualista, egoísta e não educado, inteligente, habilidoso e polido era porque havia sido criado assim. Não que alguém tivesse ensinado ele ser um verdadeiro marginal, na verdade é porque fora marginalizado a vida toda. Seus atos de agressão não passavam de gritantes pedidos de ajuda. Logo suas dificuldades de aprendizado se justificavam por nunca ter aprendido nada, por ter um espírito tempestuoso, inconstante.

Continua...

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Aviso >>>>

Olá pessoal! Estou só passando para avisar que em breve, em poucos dias, estarei iniciando uma série de postagens. Será um breve conto, que será publicado em algumas partes.
Estou terminando de escrevê-lo, não irei postar as primeiras partes ainda porque preciso terminar o final e até lá o início pode sofrer pequenas alterações.
Certo, então é isso fiquem de olho que logo será iniciado as postagens.
Como já disse o conto será publicado em blocos, optei por fazer assim devido o tamanho do conteúdo, que é um pouco extenso, podendo assim tornar sua leitura cansativa em frente a tela do computador.
É isso, obrigado pela sua visita, até logo!
Jadson

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Não se vive apenas uma vez

A última luz na vida daquele pobre homem se apagou muito intranquilamente naquela noite, naquela quinta feira. Toda uma vida, bipolar ao seu curso, terminara daquela maneira triste, indesejada até mesmo para o mais miserável dos seres humanos. Já não lhe era tão feliz nos últimos tempos, pelo contrário, a vida lhe parecia um purgatório, onde pagava a cada dia o que nem mesmo sabia que havia cometido, e ninguém sabe ao certo se havia cometido algum pecado tão grave para se encontrar naquela situação deprimente.
O seu nome, acredito eu, ninguém saiba ao certo qual é. Apenas era conhecido como “Profeta”, por sua longa barba. Um simples morador de rua que perambula por aquelas vielas empoeiradas daquela pequena cidade interiorana, ao norte do estado. Vivia na rua a alguns anos, tantos que ninguém pode datá-los, pois a maioria apenas se lembra que ele sempre esteve ali, como parte da paisagem do local.
Dela, da rua, extraia sua moradia, seu sustento, suas amizades, animais companheiros, cigarros, trocados para a bebida. Esta sim, depois das ruas, é sua segunda companheira, quase sempre se encontra bêbado, aqui e ali. Ai sim, seus lábios se tornam labirintos, nos quais os que se arriscavam a se aventurar pouco entendiam o que eles expressavam. Muitos acreditavam que eram profecias, por, quem sabe, levarem a sério o título conferido a ele. Pobre Profeta sujo e maltrapilho. Poucos puderam conhecer a outra metade, a metade mais colorida e feliz, e não esta que se pode classificar como a pior fase de sua vida.
Há tempos a atrás, antes mesmo de muitos de nós terem nascido, havia naquela cidadezinha, um senhor, muito culto, cheio de vida e voracidade quanto aos negócios. Grande e bem sucedido fazendeiro daquela região. Dominava e administrava com mãos de ferro seus empregados, seu dinheiro, seus filhos e tudo que lhe pertencia. Quem o via e conhecia sabia muito bem quais eram seus traços de personalidade, e o respeitavam, e dele tinham ótimas expectativas. Parecia que a era de reinado a frente dos assuntos políticos e econômicos daquela região se estenderiam por longos anos. Isso se dava com maior veemência sabendo que era jovem e poucas rugas de cansaço lhe haviam tomado a face.
Porém, muitas e muitas vezes a vida, é sim, ela mesmo, nos prega inacreditáveis peças, da reviravoltas tão radicais que parecem causos impossíveis, como aqueles contados a beira de uma mesa no fim de uma festa ou mesmo em volta de uma fogueira de acampamento e até mesmo nas mentirosas rodas de amigos. E nestes casos, conhecendo e vendo como a corda rebentou no lado mais fraco tudo fica mais claro.
Com aquele fazendeiro poderosos e influente, que mantinha tudo em grande equilíbrio e controle, não fora tão diferente. Um pouco surpreendente, mais nada que já não ouvimos por ai.
Sua querida e amável esposa, modelo de mulher. Tinha um defeito, pequeno, e que ao longo dos anos tornou-se sua desgraça, ou melhor, a desgraça de seu esposo, fiel e dedicado. A inconstante vontade de ser e ter mais, não satisfazer-se com o que tinha, e por mais que tivesse cada vez mais não lhe parecia suficiente. Quanto mais se tem mais se deseja ter. Mas isso cresceu sem que ninguém percebesse.
Enquanto este desejo se restringiu apenas às coisas materiais, quase não foi um grande problema, dinheiro ali era o que não lhe faltava. Contudo, seus olhos se desviaram para o lado de fora da cerca de seu compromisso matrimonial. Em pouco tempo, seu marido não lhe satisfazia mais, queria experiências mais empolgantes, mais quentes, diferentes do que sentia dentro de casa.
Debaixo dos olhos do pobre homem, ela o enganou, roubou, não apenas seu dinheiro, mas suas propriedades, seus filhos, sua vergonha, sua vontade de viver, sua dignidade. O deixou só, sem rumo, sem nada. Ele pagou seus pecados ao acreditar que o fundo do poço era o fim, que se poderia viver apenas uma vez. O golpe foi tamanho grande e repentino que coagiu qualquer potencialidade de reação. Tornando aquele vigoroso e determinado homem, num submisso, sujo e desgraçado ser. Assim nada lhe importava, vivia por viver. Encontrou nas ruas, na bebida e nos sarnentos cachorros seu lar. A bebida era seu anestésico assim como para tantos outros.
Ali poucas horas de seu fim, naquela quinta feira, eu ainda o vi, sentado naquele posto de combustíveis, em uma cadeira vermelha próximo a porta do banheiro. Estava muito sujo e seu cheiro podia ser sentido a uma certa distância. Com uma calça preta, rasgada, uma camiseta vermelha de gola, com marcas pretas, me parecia sangue coagulado. Cabelos e barbas compridas. Conversei por alguns minutos com ele, mas conversar não bastava, tremia de frio e de fome. Comprei algo para que ele comesse, e também consegui um agasalho para ele. Ao perguntar se lhe faltava algo, como quem diz “está melhor agora”, ele surpreendentemente me responde, “um cigarrinho e uma cervejinha ia bem meu senhor”. Pobre homem, mesmo sabendo que aquilo lhe faria mal a saúde, não resisti e comprei-lhe uma carteira de cigarros, uma caixa de fósforos e duas garrafas de cerveja. Seu sorriso amarelado e incompleto foi meu obrigado.
Foi a última vez que o vi. Ou melhor, o vi com vida. No dia seguinte, acompanhando o jornal do meio-dia, algo me surpreendeu e me deixou muito abalado. O Profeta havia sido friamente assassinado. Segundo a nota do jornal, um rapaz lhe pedira cigarros, e o coitado negando-lhe, pois talvez não pudesse imaginar quando receberia tal regalo novamente, recebeu cinco golpes de tijolo no rosto, falecendo cruelmente naquele mesmo momento, sobre a calçada, próximo ao posto de combustíveis, onde eu o vira pela última vez com vida. O rapaz foi preso, mais logo solto, afinal matar um indigente, para aquela comunidade teria soado até mesmo como um favor.
Sua vida foi desgraçada pela arrogância e o roubo, e mesmo quando nada tinha, o pouco que lhe restava ainda mediante a sua morte foi lhe tirado. Mas Profeta lutou sem forças. Entregou-se, pagando seu único pecado, o de acreditar que se vive apenas uma vez. Desacreditado no recomeço. Talvez a culpa tenha sido minha. Talvez não. O preço talvez tenha sido alto demais.


N.A.: Este texto é uma obra de ficção.