sábado, 31 de maio de 2008

Fragmentos Inacabados

Retratos isolados de muitas noites. Algumas bem distantes, outras logo ali.

G. Baden


As nuvens avermelhadas

Sentado no meio-fio a fome é morta. Antes mesmo da sede. A sede pela anestesia. Pela vontade da anestesia.

Olhar para o céu escuro sem estrelas. Apenas nuvens carregadas da chuva que só vem amanhã.

As nuvens, que com a luz dos postes se tornam vermelhas.

Só quero me anestesiar. Me curar. Esquecer. Me curar.

Ao fundo, um velho refrão de uma música pouco conhecida. Um amor perdido. As nuvens vermelhas servem de consolo.

Estou curado. Anestesiado. Volto ao real numa velha praça, um lugar abandonado. Somente eu, as nuvens, a música esquecida e as estrelas não vistas.

Vejo apenas as nuvens avermelhadas. Elas são minha companhia. Minha cura. Minha Anestesia.

Um vinho seco pra esquecer.

* * * * *

Olhos calados

O espelho me mostra o que eu não quero ver. Quero mais. Quero que ela veja. Lembre de cada traço do meu rosto. De cada mecha de cabelo fora do lugar. Cada porção de fumaça que sai da minha boca.

Sinto falta do seu olhar. Falta das coisas que não me disse. De tudo que manteve em segredo com os lábios cerrados e o olhar que me dizia tudo.

Talvez eu não os veja mais. Talvez possa enxergá-los, mas não encontrar as palavras de antes. Tudo mudou. Eu como sempre não vi.

Minhas palavras a ensurdeceram. A calaram e cegaram. Sai sem olhar para trás. Na primeira esquina senti, mas não me arrependi. Não olhei. Dali em diante nunca mais os vi. Seus olhos se fecharam a mim. Calaram-se e nada mais.

* * * * *

A morte de Jay

Após alguns tiros ele caiu quase inerte. Com as últimas forças que tinha agarrou a barra da calça de seu assassino. Foi arrastado por alguns metros. Somente com as coronhadas da arma em sua cabeça ele acaba largando e deixando o atirador ir embora.

Antes que saísse pela porta daquele velho banheiro público, os dois ainda trocaram um último olhar. O matador virou a esquina e se foi, sem remorso, sem dúvida de que o que fizera era o correto naquele momento. Ele merecia a morte e nada mais.

Jogado ali, nas sombras do banheiro imundo, ele ainda suspira um pouco, virasse de barriga para cima e morre.

Jay morria ali, só, sem direito a uma segunda chance. Sem direito a perdão.

Sete dias depois ele renasce. Não se chama mais Jay. Seu nome agora é Jonas. Uma pessoa diferente daquela que o assassino havia deixado na miséria, morto e sem esperanças.

Ele renasceu. Seu nome é Jonas.


* * * * *

N.A.: Estes são fragmentos de algumas coisas que venho escrevendo paralelamente ao conto de Max. Enquanto o conto não sai por inteiro posto estes pequenos textos. Um agradecimento a dois grande amigos, Alceu Malta e Jader Júlio.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Lembranças do não visto

Micha Pawlitzki


Os dias estão passando rápido. Tem vezes que eu nem sinto mais. Entro sem direção numa floresta. Ela me parecia mais clara, mas percebo que agora se tornou tão densa que não vejo nem mesmo um palmo a minha frente. Mesmo assim eu continuo andando até sair dela.
Sempre que entro nesta escuridão umida e fétida escuto os cliques das armas de batalhas antigas. Vejo a respiração ofegante de cada soldado que ali respirou pela última vez. Uma fumaça pouca que saía das narinas e se perdia logo depois. Eu os vejo esvoaçados. Quase que se perdendo floresta a dentro. A cada clique de armas minha tensão aumenta. O curioso é não ouvir os disparos. Imagino que foram congelados pelo tempo. Tempo que passou rápido demais. Eu quase nem sinto mais.
Eu ainda os vejo.

*morador da vila ao norte da floresta que se atrevia a escrever cartas



* * * * *

Me desculpe abandonar mais uma vez o blog. O fato é que Max me abandonou. Tenho tentado neste últimos 20 dias encaminhá-lo, porém ele quase que definitivamente me deixou sem dar explicações e nem mesmo respostas. Espero que volte. Enquanto isso publico este relato de memória.
Dedicado a E.D.A.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Max, 15 dias antes de morrer - Parte 3

O anticorpo à luz. No terraço e na janela. A velha bicicleta.


Solus-Veer


Em seu velho quarto, na casa de seus pais, havia duas janelas, uma bem em cima de sua cama, do lado direito, a outra em frente, mais distante um pouco. A janela lateral era revestida por uma cobertura de metal pelo lado de fora, isso era, para Max, muito bom, a placa de metal móvel impedia que luz entrasse em seu quarto, estava protegido por ela. Porém, a janela frontal não dispunha do mesmo mecanismo e pior que isso, era de frente para o leste. Todos os dias o Sol nascia por aquele lado. Maldita janela. Lá pelas cinco e meia, seis da manhã ele era despertado pelos primeiros raios. Seu sono nunca passava deste horário. Por mais que instalasse uma cortina, a luz a vencia. Ele era vencido.

Com o tempo Max acostumou-se a dormir na presença de luz. Isto se tornou tão forte em seu comportamento, que depois de um tempo exposto à luz todas as manhãs, em favor de mais algumas poucas horas de sono ele adquiriu um anticorpo à claridade. Contudo, isto não foi o bastante. As sucessivas batalhas travadas todas as manhãs contra os maléficos raios de luz lhe conferiram hábitos noturnos. Dormia de dia, e ficava acordado à noite. Somados os meses trabalhados na sorveteria e enfim sua metamorfose havia se tornado quase completa. A noite passou a agradá-lo mais, o dia, a luz do dia, cada vez menos.

Outro fator que lhe tornava à noite mais preferida era o fato de que neste período do tempo as ruas estavam sempre desertas. A cidade adormecia num silêncio mórbido. Podia ouvir sons vindos dos mais longínquos lugares. O som do vento que batia em sua janela de metal, que transpassava seus vários orifícios, parecia querer formar notas musicais. Sons estes que lembravam sua infância. Lembravam uma velha bicicleta amarela de banco vermelho que ao longo de seu guidão apresentava um pequeno buraco duplo na superfície cilíndrica do metal. O buraco de cima era maior que o de baixo, e o vácuo na face interna do guidão funcionava como uma caixa de ressonância. Quanto mais rápido Max corria com ela, mais alto o som ecoava. Era um som semelhante a um grito de coruja. A janela tinha quase o mesmo som, só que mais agudo. Sempre que parava para escutar o som na janela, lembrava das corujas que via em programas animais na TV e claro, de sua velha bicicleta.

As noites sempre eram tristes para ele. Mas este sentimento era mais confortante. Sentia que quando estava quieto, solitário, abalado, numa quase completa escuridão, conseguia organizar melhor seus pensamentos. Conseguia visualizar as simples idéias que atacavam a todo momento sua mente, antes mesmo que pronuncia-se uma única palavra, o que o tornava um confuso. Conversava consigo mesmo, olhando ao longe. Sua insônia era sempre acompanhada por uma ida o terraço da velha casa. De pijamas, sentado na extremidade da laje, com os pés balançando ao vento, ele pensava nas coisas que queria fazer. Foi ali que a maior parte de suas incertezas tiveram repostas. Desesperadas respostas. Quando chegava num ponto onde não mais podia encontrar qualquer solução que fosse, amortecia sua mente com algumas tragadas. Não só a mente, seu corpo todo. Deixava o vento frio e congelante da madrugada resfriar suas extremidades. Quando não mais sentia as pontas dos dedos, o nariz, as orelhas e a boca, ai seu desligamento terreno estava completo. Transcendia para seu mundo particular. Mundo escuro.

Tim Pannell


Perdeu as contas das noites que passou no terraço de casa. Tossia muito, tinha constantemente resfriados fortes e dolorosos. Mas não abria mão de seus momentos a sós na escuridão e no silên

cio que a noite proporcionava. Assim foram suas ultimas noites em sua cidade natal.

Esta vida, noturna, foi levada como legado para sua estada na capital em busca dos estudos. Mesmo com as aulas matinais e o trabalho noturno, Max, matinha seus momentos madrugada adentro. Apenas trocara o terraço, pela janela do seu apartamento no décimo oitavo andar de um prédio caindo aos pedaços no centro, em cima de um banco e uma farmácia, em frente a uma praça onde os mendigos costumavam usar o chafariz como piscina, lavatório e bebedouro. Na janela, dividia o espaço com os varais e a noite era bem mais ruidosa e clara do que as passadas na suja cidadela. No entanto elas eram mais frias ali. As sensações sofriam apenas pequenas variações, mas para ele, eram extremamente significativas. Era como degustar um vinho. Cada detalhe, o aroma, a textura, o tatear da língua e o cuspir para fora, todos sem exceção eram muito importantes. As noites eram diferentes em cada local. Com o tempo se acostumou a ponto de que quando estava na capital, sentia falta das noites interioranas, enquanto estava na casa dos pais, a saudade da janela do apartamento na rua barulhenta era grandemente sentida.

Este habito dava a Max uma outra visão do mundo. Talvez fosse por isso que tantos paradigmas eram por ele quebrados. Tantas coisas fazia que aos outros parecia idiotice e motivo de gozação. Talvez fosse isto que lhe conferisse um olhar diferente, prioridades diferentes. Isso certamente o fazia sentir de outra maneira. Roupas, dinheiro, pertences, tudo isto não tinha valor.

Queria experimentar sensações. Ter emoções que jamais tivesse tido. È fato que às vezes ele tinha vontade de ter e ser certas coisas. Mas este desejo interno pelo diferente, pelo que realmente o fazia transcender deste corpo e ir longe, tão longe quanto os sons que escutava, era maior dentro dele. Tão grande que ele nunca conseguiu traduzir em palavras. Não podia contar a ninguém. Nem mesmo Vlad, seu fiel e mais chegado companheiro um dia sequer havia tido o prazer de um compartilhamento destas emoções.

Quando subiu no terraço, numas das ultimas noites das férias daquele ano, Max sentiu algo diferente. Ou melhor, não sentiu mais nada. O anticorpo contra a claridade morrera dentro dele. Pela primeira vez em anos Max desesperou-se. Seu oráculo estava ameaçado, talvez até extinto. Faltavam apenas 15 dias para voltar à capital. Ele desceu do terraço as presas, com muito sono. Deitou e dormiu quando ainda era noite.


sexta-feira, 2 de maio de 2008

Max, 15 dias antes de morrer - Parte 2


A sorveteria. A praça. O passado.

Antes de ir morar na capital, quando conseguira passar no vestibular, Max trabalhava em uma sorveteria. Uma bem badalada, numa das extremidades do “bobódromo”. Era um ponto de encontro dos jovens abastados e beberrões. Vendiam mais bebidas do que sorvete. Max e seu grande amigo Vlad serviam ali. Trabalhavam quase que todos os dias, sem folgas, sempre no turno da noite e com muitas horas de labuta. Entravam às seis da tarde com horário de saída previsto para a meia-noite. Isso era o que tinha sido prometido pelo dono da sorveteria. Um jovem rapaz, que havia tomado as rédeas do negócio com o envelhecimento de seu sogro, o verdadeiro proprietário. Antônio, este era seu nome. Um maldito carrasco. Aproveitava-se dos garotos que tinha poucas opções de trabalho e os fazia trabalhar até que a sorveteria fechasse. O que quase em todos os dias passava longamente das doze horas da noite.

Contudo, apesar deste quadro escravagista, os dois divertiam-se bastante. Conheciam e conversavam com a cidade inteira. Colocavam algumas músicas no rádio da sorveteria e os clientes sempre elogiavam o gosto musical dos rapazes. Apesar da simpatia que mostravam a dupla de serventes, não passavam de clientes mentirosos e arrogantes. Eram amigos eternos, enquanto os dois vestiam o avental e o boné do uniforme e não passavam de dois garçons amigáveis que contavam historinhas engraçadas sempre muito educados. Foram dali mal os cumprimentavam, isso se algum cumprimento fora da sorveteria existiu, o que é bem pouco provável.


Scot Frei


Max e Vlad pouco se importavam com mais este fato. Percebiam. Eram gentis. Mas por trás sempre se vingavam. Tanto dos abusos do patrão como da falsidade escancarada dos clientes.

Primeiro do patrão. Deste, eles adoravam se vingar. Todos os dias, no final do expediente, na hora de jogar o lixo, levavam consigo para o lado de fora da sorveteria, pela porta dos fundos, algo a mais do que simples e negros sacos plásticos. Seis ou sete garrafas de cerveja, um maço do cigarro mais caro e alguns chocolates, este era o “pagamento” das horas extras, como eles mesmos diziam entre si.

Os clientes, este tinham um castigo pior. Reclamou do serviço? Tudo bem fazemos de novo. Reclamou de sacanagem ou sem motivo, por pura pentelhagem? Toma sorvete cuspido. E não é um ‘cuspezinho’ assim, daqueles saliventos. Um verdadeiro despacho de mucosa nasal e pulmonar, catarro verde mesmo. Enquanto a clientela filha-da-puta tomava o seu sorvete ou seu suco natural, com uns ingredientes a mais, os dois mantinham a pose. Falsos, mas com razão. Humilhados? Talvez. Vingados? Ah, claro que sim. Felizes? Não se pode saber.

Esse trabalho lhe rendeu bons tempos com Vlad. Pena que quando o expediente acabava, não existia nenhum movimento se quer na rua. Desertas, com direito a bola de feno rolando ladeira a baixo, com aquela nuvem de poeira acompanhando, ambas levadas pela brisa que passa sem obstáculos. Assim só restava andar até a praça da igreja, fumar os cigarros e beber as cervejas. Sós os dois amigos. Às vezes eram acompanhados por Will, ex-funcionário da sorveteria, que já conhecia o esquema do “pagamento” das horas extras, e ficava rondando o estabelecimento perto da hora de fechar para participar das tragadas e dos goles. Mas isso era esporádico, só quando ele estava com as reservas monetária caídas. O certo era que quase todas as madrugadas, os dois poderiam ser facilmente encontrados na praça da igreja ou na frente da casa de Vlad há desfrutar os prazeres destrutivos da carne.

Falando em prazeres da carne. O sexo? Isso ainda era desconhecido a eles. Talvez conhecessem bem a nomenclatura, algo como “lado teórico”, pratica mesmo, só a das mãos peludas. A era dos 17 anos, uma vida quase que abreviada na sorveteria, no vídeo-game, nos jogos de futebol na quadra da velha escola e nas noites sem fim nas praças e ruas desertas, isso sem contar com a literatura pornográfica e as sessões cinematográficas com atrizes de “boa aparência física”, vulgas “gostosas”. Poucos amigos, e nenhuma amiga ou namorada. Esquecera deste lado da vida. Eram adolescentes despreocupados. Nem mesmo tinham em mente seus anseios universitários e profissionais. Vlad muito menos. Era desgraçadamente inteligente, um verdadeiro “sênior” em matemática, mas disso só tirava proveito na hora de calcular e conferir o caixa da sorveteria.

Viviam num mundo pequeno, cheio de detalhes pontuais, mas não eram medíocres. Humilhados, mas nunca sem orgulho. Sua amizade era seu orgulho. Mas isto logo iria mudar. Mais do que eles jamais imaginaram.