quinta-feira, 29 de novembro de 2007

A casualidade, amargura e o prazer do esquecimento

fotografia: © 2005, Nelson D’Aires
Era prisioneiro já a três anos. Foi durante aquela operação desastrosa. Tentou até mesmo avisar de como seria impossível e inviável. Não por medo ou por negligência, mas meramente por lógica. Ninguém o entendeu mesmo assim.
A vida estava ficando cada vez mais curta, podia até mesmo vislumbrar seu fim. Queria de todas as suas forças desistir, sentia-se esquecido naquele campo, juntamente com seus homens. Aquela operação, a qual se envolvera era, a princípio simples, mas a forma de como agiram e o despreparo de modo generalizado de seus soldados tornou o veredicto certo. Muitos morreram, outros tantos foram presos. Ele ainda não sabe qual foi o pior caminho entre estes.
Os opressores do exército inimigo eram cruéis. O sangue em seus olhos só era aplacado pelas leis que regem o comportamento em conflitos como aquele. Mas convenhamos, se em tempos de paz as leis são violadas a todo momento, mesmo com a aparente ordem. Em tempos de guerra isso é praticamente indiscutível. São quebradas sempre. Quem paga são os oprimidos, que subjugados e coagidos, suas reações podem causar ainda maior sofrimento por ações do altivo inimigo.
O peso da liderança, a necessidade de responder perguntas e trazer soluções para seus companheiros e os belos olhos daquela enfermeira lituana, a qual conhecera antes do ataque, traziam esperança aqueles dias quentes, úmidos, sujos e sangrentos no campo de prisioneiros. Olhar para os lados e ver homens, passados três anos de cativeiro, magros, extremamente sujos e doentes. Aquela visão tornava ainda mais palpável seu futuro. Morrer ali naquele lugar terrível. Sem honras, sem uma última visão de seu país, de seu mundo deixado para trás no momento em que se tornara voluntário naquele conflito.
Ser voluntário certamente era algo sobretudo nobre, suas ações eram mais verdadeiras e incisivas, sua vontade era de estar lá, lutando. Com isso conquistara o posto de líder daquela tropa. O que, após três anos de cativeiro se tornara um fardo que não carregaria, enfim para sua felicidade, se pode ser encarada assim, estava doente, magro e perto ainda mais da morte.
Escrever uma carta, neste momento era o que faria, não para pais, para amigos ou para sua nação. O homem solitário não se preocupava mais com coisas grandiosas. A relação conflituosa do planeta, a justiça, a verdade e o patriotismo eram nas últimas coisas que ele pensava. Sim, os olhos lituanos pouco conhecidos, para os quais olhara apenas umas poucas vezes, mas o suficiente para gravá-los em suas lembranças diárias. Não era por amor. Isso não existia mais naquele corpo envelhecido pelo sofrimento. Mas sim porque vira nas coisas mais casuais o real e único sentido da vida.
Por acaso perdera controle da situação e fora tornado cativo. Por acaso deixara muitos dos seus morrerem naquele campo, negligência não, estava fora da suas mãos impedir tal fato. Por acaso vira aqueles olhos. Por acaso ficara doente. Por acaso encontrara o papel e um velho lápis para escrever e expressar o sentimento do acaso e sua filosofia da amargura. Escrever e depois morrer. Que é o homem se não a necessidade de ser lembrado, mesmo que por acaso?
Entregou a carta nas mãos de seu companheiro mais fiel, e recomendou que quando saísse dali a entrega-se a lituana de olhos castanhos, nada especiais, mas que dos quais nunca se esquecera. O conteúdo desta era amargo e cheio de conclusões, talvez ela mostra-se ao mundo um dia, mas isso pouco importava.
Após entregá-la tentou fugir de si mesmo e do campo. Foi preso novamente. A decisão do dirigente do campo de prisioneiros foi ainda mais cruel, com ele mais dez deveriam morrer. Assim uns cuidariam dos outros, ninguém foge dali. Fugir do seu fim é impossível, ele deve chegar um dia. Para eles chegava a três anos, todos os dias.
Um a um foram escolhidos. Para seu desespero, por acaso, aquele jovem rapaz o qual entregara a carta era um deles. Os bodes expiatórios foram colocados em fila. Ele realmente vê o quanto sua filosofia de conclusões estava certa. Setiu-se mal, mas logo bem, estava certo. Respira ofegante, não queria a morte de todos aqueles. Sua era a carga, e somente ele deveria carregá-la. Talvez não. Talvez fosse aquele ato o maior e mais carregado de liberdade que poderia oferecer a seus liderados. Sentia-se um verdadeiro líder, morrendo, sendo liberto, e com ele mais nove fiéis e bem conhecidos rostos. Recentia apenas o fato de que o único objeto que levaria a posteridade a verdade sobre aqueles fatos casuais se perderia. A carta morreria. Não com ele mas com seu companheiro.
Um a um recebem o tiro fatal na cabeça, por trás. Todos ali mortos, ele também. A carta também.
Dois dias depois, um ataque rápido e preciso, sem vítimas, resgata todos aqueles sobreviventes prisioneiros dos três anos de cativeiro. Mas ninguém se lembra daquele amargurado líder, cuja o fim trágico assim nunca foi conhecido. Foi simplesmente e por acaso esquecido. Nada foi válido, uma constante de momentos desnecessários. Em vão. Para nós, para ele não.

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