sexta-feira, 2 de novembro de 2007

O Portão Belga



Desembarque dos Soldados Aliados nas Praias da Normandia.
França, 6 de Junho de 1944


Estava enjoado, aquele movimento constante, um certo desequilíbrio, o deixava mais confuso do que já estava a algum tempo. Desde que embarcara há 18 dias, sentia sempre este enjôo. Todos diziam que era algo típico, mais se tornara mais forte no momento que entrara naquela embarcação menor. A aparente paz que permanecera nos dias de viajem era, agora, quebrada pelos estrondos das explosões, hora muito longe, fora de alcance, hora tão perto que podia sentir o gosto dos explosivos. Água e medo cobriam seu rosto. E como água tornando-se vinho, seu rosto estava vermelho, sangue, seu companheiro à frente, F. Stone, fora atingido certeiramente na cabeça. Já estavam em linha de tiro das casas-mata inimigas no topo da colina, no final da praia.
6 de junho de 1944, Rolland Gonçalves, americano filho de uma nova-iorquina com um gajo luso de Porto. Dezenove anos, odiava barcos, peixes, areia, enfim, tudo que lembrasse o “maldito” oceano. Neste momento, depois de oito meses de treinamento no Fort, mais sete semanas no acampamento em treinamento intensivo, dezoito dias no navio, de Nova Iorque até a Inglaterra, e depois disso a costa da Normandia estava ainda mais odiando o mar e aquela guerra que ele mal entendia. Dentro daquele veiculo anfíbio, o que mais odiava estava ai por todos os lados, e pior, tinha infinitamente mais motivos para estar apavorado.
Frank Stone era seu colega de companhia, de pelotão, de grupo de combate e de quarto. Estavam juntos desde o alistamento. Mas não há tempo para cerimônias, aquela realidade não permite, por vezes não deseja tais ritos. O que mais se aproxima de uma solenidade transcendente neste momento é o agradecimento inconsciente de Rolland diretamente a Deus, por ter sido Frank e não ele a ter tombado, feito um saco de areia molhado. “Porque estou aqui?” perguntou a si mesmo enquanto pulava pela lateral do barco.
A guerra era grande e complexa para seu entendimento, sua função ali era, para ele indefinida. Durante o treinamento foram ensinados de que cada um tinha seu papel e se desempenhassem bem trariam a vitória para casa. Mas aquilo era como nunca obscuro para Rolland. Os inimigos pareciam milhões de vezes maiores, seu medo e visão, limitada pela fumaça, explosões e gritos desesperados de soldados feridos, o deixavam coagido. Lutar e tentar chegar ao pé da colina parecia muito perigoso, sua decisão era de ficar ali, atrás daquele portão belga (obstáculo usado pelos alemães nas praias francesas durante as invasões aliadas do Dia-D).
Vendo aquela atitude, Joe Mercury, soldado que desembarcou no barco vizinho ao de Rolland resolveu fazer o mesmo, afinal sua vida valia mais do que os duzentos metros de praia até o pé da colina, donde poderiam arremeter o ataque. Logo Bower Sarte, outro soldado fez o mesmo, e à medida que desembarcavam, os soldados que não morriam até chegar aos portões belgas faziam sempre o mesmo até não haver mais nenhum o qual pudessem se esconder em todo o perímetro daquela costa.
A batalha durou três dias, até que todos os “bravos” aliados fossem eliminados, um a um, pela fome, sede, ou mira exime dos franco-atiradores inimigos. Estados Unidos, Inglaterra e Canadá nunca tomaram a França novamente. O Eixo venceu a guerra e Hitler, assim como queria dominou o mundo.
Judeus, ciganos, comunistas, negros, mulatos, baixos de cabelos negros e olhos castanhos não existem mais. Todos no mundo, agora repleto de loiros altos de olhos azuis, com fala empolada e retórica ariana na ponta da língua, obedecem a um único Führer. Mas o mundo esta finalmente perfeito. Todos falam bem do governo, os que falam mal sumiram. Todos comem os deliciosos chucrutes e tomam chopp quente. As crianças desconhecem o que significa amor, mas disciplina, ordem e Hey! Hitler! elas sabem décor, e repetem várias vezes ao dia.
É, se Rolland não tivesse parado, se escondido. Se sua visão fosse além do que via com os olhos. Se usasse o instrumento em sua mão. Tinha tudo ali, apenas não via, pensou em si mesmo e parou. Talvez seja porque estava incomodado com o oceano, com as explosões, com os gritos. Tudo estava tão difícil, ele tinha todas as razões para desistir, abandonar o que havia ido fazer ali. Sim, sim, era sua vida que estava em risco! Sua missão ali era obscura, para que continuar a fazê-la? Ele até poderia estar aqui hoje para nos contar quão difícil estava à situação e justificar com argumentos plausíveis sua decisão. Pena que dele não resta nada além de pó. Quem sabe faria diferente se visse o resultado do que fez. Infelizmente ele só tinha uma chance, uma vida, um mundo apenas para cuidar. Não cuidou. Aquela corrida até o fim da praia, para perto do pé da colina teria mudado muita coisa mesmo parecendo algo simples, mesmo com a visão obstruída, ele deveria ter agido, mas o portão belga era mais cômodo. Pobre Rolland.

N.A.: Esta crônica será publicada na primeira edição da revista Varanda, produzida por mim, por Rodrigo Pinto e João Zampier.

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