segunda-feira, 2 de junho de 2008

Max, 15 dias antes de morrer - Parte 4

A perda dos cabelos e a verdade dita por um possivel companheiro.

Arne Hodalic

Após acordar daquela noite maldita, se levantava com o maior desespero da sua vida. Sua tristeza e desgraça pareciam ser tão grandes que ele teve todos os pensamentos apagados de sua mente, nem mesmo a faculdade e a esperança de algo maior no futuro, nada o conseguia segurar ou roubar seu desespero.

Tudo que ele havia conseguido até ali, com grande esforço e sem ajuda nenhuma, não lhe era mais agradável. Suas conquistas mais próximas haviam superado as expectativas, não que ele não as aguardasse com muita vontade, mas simplesmente não as esperava tão cedo. Uma grande faculdade, onde estava no meio de grandes mestres, com os quais aprenderia coisas que o tornariam num grande profissional um dia. Muito diferente do futuro cogitado por muitos que o viram em sua pequena cidadezinha. Um possível atendente de sorveteria para o resto da vida, no máximo um gerentezinho de alguma empresinha qualquer. Mas não, sua vida, definitivamente havia tomado um rumo decente. Em breve seria um profissional com formação em uma ótima instituição. Uma conquista da qual podia sentir-se feliz. Apenas podia, mas não sentia.

Muitos de seus amigos, inclusive Vlad, não haviam sequer conseguido algo parecido. Ainda esperavam na pequena cidade e por cartas contavam suas façanhas. Tanto Max quanto Vlad levavam vidas quase que semelhantes e retratavam um para o outro pelas inúmeras cartas. Um falava sobre a medíocre vida de trabalho no supermercado e depois uma ou duas cervejas no bar da esquina, e o outro da medíocre vida na faculdade e das duas ou três cervejas nos bares que a rodeavam, sempre sozinhos nestas ocasiões.

As conversas sobre o sistema decadente, sobre as políticas dominadoras, sobre a gigante massa de manobra, sobre as grandes revoluções já não preenchiam as correspondências. Apenas o desespero ante uma vida sem estímulos, sem sentido. Por mais que infindos objetivos lhes fossem exibidos no horizonte, não viam um palmo a frente dos olhos. Max não suportava mais. Por muito tempo a sua janela, o vento que a tocava e suas viagens solitárias em seu mundo interno, em seu oráculo, o haviam preenchido. Elas o abandonaram. Ele se via só e desgraçado. Suplicava diariamente para que voltassem, para que seu desejo de viver, seus sonhos, sua vida, suas ilusões com um possível futuro tomassem a sua mente novamente. Mesmo que não fora tão feliz assim como imaginara, ainda assim preferia iludir a si mesmo do que viver friamente na luz e no esclarecimento. Ele estava à mercê de uma vida clara, seria e obediente. Preferia morrer a continuar assim.

Seu emprego conquistado há dias e dias de insistência e muitas demonstrações de valor poderia ser algo que o tirasse desta descida sem fim. Mas em pouco tempo, abandonado por sua aura de vitalidade, foi abandonado também pela saúde física e mental. Perder o emprego foi uma questão de tempo. Estava novamente na sarjeta de um mês antes. Enfim, tinha perdido quase tudo.

Após sair de dentro de seu quarto sujo e desarrumado ao extremo, foi até o banheiro, apanhou uma gilete para barbear-se. Ao olhar seu rosto bem conhecido no pequeno espelho manchado desistiu de cortar a barba. Jogou a gilete novamente dentro da pia. Voltou ao quarto, pegou uma tesoura pequena, de cabo preto e bem afiada, foi ao banheiro novamente. Seu cabelo que tinha um comprimento razoável, pois não o cortava há alguns meses, teve as pontas puxadas para cima com muita violência. Cortava mecha por mecha com muita força. A tesoura passava sem dificuldade nenhuma. Em poucos minutos estava quase totalmente careca. Ainda lhe restava uma camada muito rala e fina de cabelo. Pegou a gilete que estava por baixo dos tufos de cabelo no fundo da pia. Percebeu que ela tinha uma das extremidades quebradas, devido à força com que fora lançada dentro da pia de louça branca. Lavou cuidadosamente a lâmina, e finalmente a passou levemente, agora com delicadeza por sobre a rala camada de cabelos que ainda estavam presos em sua cabeça.

Um jato fraco de água do chuveiro foi suficiente para lavar aquela, agora, pelada cabeça. Entrou no quarto, pegou uma velha touca preta, vestiu e saiu, ainda com alguns respingos de água nas roupas e alguns fios de cabelo presos à trama da calça e no cadarço do tênis.

Desceu as escadas tão rápido e transtornado que não cumprimentou ninguém que por ele passou, nem mesmo os vizinhos do prédio. Na verdade ele nem os viu, sues pensamentos o haviam dominado.

Indo até a praça abandonada, no centro da cidade, sentou-se num dos bancos. Do lado esquerdo alguns ônibus vazios passavam. Era muito cedo e estava frio, um frio congelante. O vento que passava pela trama da touca preta congelava sua cabeça, ainda um pouco úmida. Ele olhava para o céu nublado. Ao fundo alguns tons laranjados por trás das nuvens. O sol vinha, para alegria de uns e para a tristeza de Max. Porém ele estava disposto a suportar a luz do dia. - Chega de correr disso, é inevitável, vou me entregar de uma vez por todas – disse a si mesmo em voz baixa.

Por ali, bem próximo do lugar onde Max estava sentado, um velho homem, coberto por jornais assistia a cena e via o desespero nos olhos daquele rapaz. Um desespero inconfundível para aquele velho morador das ruas. Ele logo percebeu o que se passava com Max, e assim tentou puxar conversa, talvez um diálogo, uma demonstração de experiências empíricas o faria bem. Quem sabe algo poderia ser mudado naquela mente, visivelmente conturbada.

- Que faz aqui tão cedo moleque? Não são nem seis horas ainda.

- O lugar é seu, velho do caralho? Durma ai antes que eu o faça dormir para sempre.

- Calma meu filho, só lhe fiz uma pergunta. O fedor lhe incomoda?

- Foda-se! Me importa sua petulância, essa porra de lugar ainda é público, e não vejo nenhum nome escrito neste banco. Quanto às horas, o tempo é o menos importante, ainda mais para você, tanto faz se é dia ou noite sempre está ai deitado nesse colchão pulguento e fedendo cachaça.

- Nossa, alguém acordou mesmo nervoso hoje. Tudo bem filho, foda-se mesmo. Afinal, o tempo não passa para mim, grande descoberta a sua. Não importa se estou bêbado, ou sujo, ou jogado aqui sem ninguém, a vida de um desgraçado é esta mesmo. Não achava que ainda existiam pessoas que percebiam isto, mas agora vejo que existem muitos ai como eu, desgraçados, e o pior, sabem disso!

- É mesmo? Parabéns! Agora me deixe, vá pedir esmolas. Quer um cigarro? Pegue aqui e não me importune mais com sua filosofia morta junto com sua vergonha.

- Não obrigado, chega de anestesias. Hoje é segunda-feira, dia de reflexão. Dia de relembrar tudo que fomos e tentar esboçar alguma esperança no que seremos. Só esboçar. A realidade é fácil de ser vista e difícil de ser digerida. Quando chegar a hora me anestesio de novo. Assim como você, grande sujeito que desvendou sua própria realidade, apesar de ser meio cedo para isso.

- Sim, velho filho-da-puta, chega dessa merda toda. Se quer saber a verdade, é isso mesmo, então foda-se! Quanto mais cedo melhor, assim não fico nessa ilusão que você deve ter ficado por muito tempo. Agora chega, vou sair daqui, não agüento mais esse cheiro.

- Isso, vá embora. Sei que voltará. Seremos companheiros, você apenas não aceitou isso ainda. O processo de aceitação vem logo depois da descoberta. Da grande descoberta de que sua vida medíocre não tem mais nenhum sentido e que tudo pode desabar agora mesmo. Aceitar é apenas uma questão de tempo.

Enquanto Max sai dali correndo, sem rumo, o velho permanecia gritando a frase – é apenas uma questão de tempo – até que Max estivesse longe suficiente para não ouvi-lo mais.

- Velho maldito! Ele tem razão, filho-da-puta – Max pensava em cada palavra do mendigo. A verdade lhe doía. Sabia que quando se descobre que é um desgraçado, quando a esperança se vai junto com cada tragada de cigarro, quando as coisas começam a sumir diante dos olhos, a sarjeta é uma questão de tempo. Tempo, algo que ele queria abreviar.

- Um velho, um velho fedorento, isso não, nunca! – Max gritou. E sem rumo, naquela rua vazia ele corria. O vento frio cortava seu rosto. Ele só queria ir o mais longe que pudesse. Um paradoxo entre aceitar e fugir se debatia em sua mente, ainda conturbada. Não via mais nada, em plena luz do dia. O tempo passava rápido, mais do que nunca, para ele.


* * * * *

Max está de volta.

* * * * *

"...depois de sete dias enclausurado ele acorda, sua vida nunca mais seria a mesma. Nenhum dos que o conheceram um dia entendiam o porque daquilo, nem mesmo eu, sempre achei que sabia. Ele sempre foi um enigma para mim. Hoje sei que dele, quase nada soube." - diário de Vlad Constâncio

4 comentários:

Julliana disse...

muito legal, jay. estou à espera de uma personagem linda, meiga e graciosa inspirada em mim.
hahaha beijo!

Anônimo disse...

A cada vez que leio um fragmento de Max, cada vez mais o texto se aproxima do teatro do absurdo; os diálogos marcantes quase fantasiosos, os mudanças repentinas de planos rumando para um final que, ao que tudo leva a crer, surpreendente. Beckett, Ionesco e Arrabal ficariam orgulhosos! Pra quem não conhece o autor, tenta imaginar o que se passa em sua cabeça. Mas aqueles que o conhecem sabem tanto quanto. Nossa única vantagem de conhecê-lo é presenciar de perto a evolução de Max , com ele, a evolução de Jonas...

Anônimo disse...

É como eu te disse... a cada nova parte que você escreve minha atenção fica mais presa, assim como em "A solidão de um menino". Tá ótimo! Não demore tanto tempo pra postar de novo. :} Beijo!

Anônimo disse...

muuuuito bom meeeesmo! adorei!
"a realidade é fácil de ser vista e difícil de ser digerida" oloko!!! legau pacas
espero que seja o primeiro de muitos!
bjokas
emily