segunda-feira, 5 de maio de 2008

Max, 15 dias antes de morrer - Parte 3

O anticorpo à luz. No terraço e na janela. A velha bicicleta.


Solus-Veer


Em seu velho quarto, na casa de seus pais, havia duas janelas, uma bem em cima de sua cama, do lado direito, a outra em frente, mais distante um pouco. A janela lateral era revestida por uma cobertura de metal pelo lado de fora, isso era, para Max, muito bom, a placa de metal móvel impedia que luz entrasse em seu quarto, estava protegido por ela. Porém, a janela frontal não dispunha do mesmo mecanismo e pior que isso, era de frente para o leste. Todos os dias o Sol nascia por aquele lado. Maldita janela. Lá pelas cinco e meia, seis da manhã ele era despertado pelos primeiros raios. Seu sono nunca passava deste horário. Por mais que instalasse uma cortina, a luz a vencia. Ele era vencido.

Com o tempo Max acostumou-se a dormir na presença de luz. Isto se tornou tão forte em seu comportamento, que depois de um tempo exposto à luz todas as manhãs, em favor de mais algumas poucas horas de sono ele adquiriu um anticorpo à claridade. Contudo, isto não foi o bastante. As sucessivas batalhas travadas todas as manhãs contra os maléficos raios de luz lhe conferiram hábitos noturnos. Dormia de dia, e ficava acordado à noite. Somados os meses trabalhados na sorveteria e enfim sua metamorfose havia se tornado quase completa. A noite passou a agradá-lo mais, o dia, a luz do dia, cada vez menos.

Outro fator que lhe tornava à noite mais preferida era o fato de que neste período do tempo as ruas estavam sempre desertas. A cidade adormecia num silêncio mórbido. Podia ouvir sons vindos dos mais longínquos lugares. O som do vento que batia em sua janela de metal, que transpassava seus vários orifícios, parecia querer formar notas musicais. Sons estes que lembravam sua infância. Lembravam uma velha bicicleta amarela de banco vermelho que ao longo de seu guidão apresentava um pequeno buraco duplo na superfície cilíndrica do metal. O buraco de cima era maior que o de baixo, e o vácuo na face interna do guidão funcionava como uma caixa de ressonância. Quanto mais rápido Max corria com ela, mais alto o som ecoava. Era um som semelhante a um grito de coruja. A janela tinha quase o mesmo som, só que mais agudo. Sempre que parava para escutar o som na janela, lembrava das corujas que via em programas animais na TV e claro, de sua velha bicicleta.

As noites sempre eram tristes para ele. Mas este sentimento era mais confortante. Sentia que quando estava quieto, solitário, abalado, numa quase completa escuridão, conseguia organizar melhor seus pensamentos. Conseguia visualizar as simples idéias que atacavam a todo momento sua mente, antes mesmo que pronuncia-se uma única palavra, o que o tornava um confuso. Conversava consigo mesmo, olhando ao longe. Sua insônia era sempre acompanhada por uma ida o terraço da velha casa. De pijamas, sentado na extremidade da laje, com os pés balançando ao vento, ele pensava nas coisas que queria fazer. Foi ali que a maior parte de suas incertezas tiveram repostas. Desesperadas respostas. Quando chegava num ponto onde não mais podia encontrar qualquer solução que fosse, amortecia sua mente com algumas tragadas. Não só a mente, seu corpo todo. Deixava o vento frio e congelante da madrugada resfriar suas extremidades. Quando não mais sentia as pontas dos dedos, o nariz, as orelhas e a boca, ai seu desligamento terreno estava completo. Transcendia para seu mundo particular. Mundo escuro.

Tim Pannell


Perdeu as contas das noites que passou no terraço de casa. Tossia muito, tinha constantemente resfriados fortes e dolorosos. Mas não abria mão de seus momentos a sós na escuridão e no silên

cio que a noite proporcionava. Assim foram suas ultimas noites em sua cidade natal.

Esta vida, noturna, foi levada como legado para sua estada na capital em busca dos estudos. Mesmo com as aulas matinais e o trabalho noturno, Max, matinha seus momentos madrugada adentro. Apenas trocara o terraço, pela janela do seu apartamento no décimo oitavo andar de um prédio caindo aos pedaços no centro, em cima de um banco e uma farmácia, em frente a uma praça onde os mendigos costumavam usar o chafariz como piscina, lavatório e bebedouro. Na janela, dividia o espaço com os varais e a noite era bem mais ruidosa e clara do que as passadas na suja cidadela. No entanto elas eram mais frias ali. As sensações sofriam apenas pequenas variações, mas para ele, eram extremamente significativas. Era como degustar um vinho. Cada detalhe, o aroma, a textura, o tatear da língua e o cuspir para fora, todos sem exceção eram muito importantes. As noites eram diferentes em cada local. Com o tempo se acostumou a ponto de que quando estava na capital, sentia falta das noites interioranas, enquanto estava na casa dos pais, a saudade da janela do apartamento na rua barulhenta era grandemente sentida.

Este habito dava a Max uma outra visão do mundo. Talvez fosse por isso que tantos paradigmas eram por ele quebrados. Tantas coisas fazia que aos outros parecia idiotice e motivo de gozação. Talvez fosse isto que lhe conferisse um olhar diferente, prioridades diferentes. Isso certamente o fazia sentir de outra maneira. Roupas, dinheiro, pertences, tudo isto não tinha valor.

Queria experimentar sensações. Ter emoções que jamais tivesse tido. È fato que às vezes ele tinha vontade de ter e ser certas coisas. Mas este desejo interno pelo diferente, pelo que realmente o fazia transcender deste corpo e ir longe, tão longe quanto os sons que escutava, era maior dentro dele. Tão grande que ele nunca conseguiu traduzir em palavras. Não podia contar a ninguém. Nem mesmo Vlad, seu fiel e mais chegado companheiro um dia sequer havia tido o prazer de um compartilhamento destas emoções.

Quando subiu no terraço, numas das ultimas noites das férias daquele ano, Max sentiu algo diferente. Ou melhor, não sentiu mais nada. O anticorpo contra a claridade morrera dentro dele. Pela primeira vez em anos Max desesperou-se. Seu oráculo estava ameaçado, talvez até extinto. Faltavam apenas 15 dias para voltar à capital. Ele desceu do terraço as presas, com muito sono. Deitou e dormiu quando ainda era noite.


Nenhum comentário: