quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

O fim debaixo do sol

Desatenção e morte, coisas bem próximas vistas com a luz do sol.


© Iris Coppola

Aquele dia quente, no qual o sol reinava já as seis e meia da manhã, esbravejando seus raios diretos e sem trégua sobre as cabeças que já haviam levantado para seus afazeres logo por este horário, não parecia nem um pouco um dia para se terminar a vida, parecia um dia feliz, repleto de oportunidades que se desdobrariam ao longo de seu curso. Morrer num dia como este parece até algo impossível. Os dias para se morrer são os nublados, onde nem mesmo o sol lhe concede uma última despedida, já mostrando que o caminho o qual foi traçado para aquele individuo é sombrio e de seu final até mesmo o astro rei teme e roga para que as nuvens o escondam, para que o fim não apareça diante dos seus olhos.
Naquele momento, quando o pequeno despertador azul, um velho modelo, presente herdado de sua avó materna, bate o ponteiro certeiramente na metade da volta indicando seis e meia da manhã. Hora de levantar, hora de partir para mais aquela marcha diária que se iniciaria efetivamente dali a duas horas. Sidney Sampaio levanta lentamente a cabeça, entre abrir e fechar de olhos preguiçosos, olha com dificuldade, atrapalhado pela luz natural que o ataca pelo lado esquerdo do quarto onde se situava a janela, que mesmo com a grande cortina que a cobria, ainda deixou resvalar alguns raios impetuosos que o alcançam e o afligem. Aliados ao tinir dos pequenos sinos do despertador, formando assim uma cúpula de som e luz. Sid ainda reluta, mas vê agora nitidamente. Realmente já são seis e meia, precisa se levantar e de maneira rápida. A marcha invisível daquele dia deveria começar.
O despertar sempre o desnorteia, olhar para os lados e tentar descobrir onde está. Se aquelas paredes, janela, guarda-roupas e porta são tão conhecidos, porque esta perca de sentidos ocorre? Será algum problema crônico de desatenção póstuma ao sono? Ou uma simples vertigem matinal muito comum? Poder ser qualquer uma destas situações, e disso Sid até se atem alguns minutos especificamente naquela manhã para desvendar este mistério. Logo percebe algo, uma pequena peça daquele grande quebra-cabeça que é o interior de seu ser. Os sonhos! Talvez a resposta esteja nos sonhos. Intranqüilos e difíceis de entender, se é que eles tinham algum significado. São verdadeiras viagens, ricas em detalhes, cheias de pontos que o surpreendem sempre com o alto teor de originalidade, algo incomum para ele, e de tal necessidade interpretativa que fugia ao seu alcance desvendar e compreender.
A primeira batida na porta, feita por sua mãe, quebra a cadeia pensativa e as possíveis resoluções que esquematiza em poucos segundos em sua mente. Dispersão rápida e arrebatadora, esta é uma forte característica de Sid, denotando grandes predicados de desatento, despreocupado. Características que podem ser controversas. Partido tanto para o lado da irresponsabilidade como para o campo da experimentação e conclusão mais veemente.
Assim ele se levanta de uma vez por todas da cama. Mais uma vez sua mãe bate a porta, e desta, com um toque a mais de força, como que um reforço no chamado a seu filho. Sid, irritado já com aquela segunda batida, da um grito seco em direção a porta, como se este objeto de madeira fosse sua própria mãe – já acordei, em pouco estarei pronto para o café – coçando a cabeça, olha em volta a procura de seu tênis. Ajoelhasse rapidamente o lado da cama, e olha em baixo dela, lá estava seu velho par de tênis preto, muito surrado, e com a sola gasta, principalmente nos calcanhares, sempre para o lado de dentro. Levantando-se abre o guarda-roupa, pega no cabide uma camisa xadres, azul e branca, sua calça e um par de meias. Veste-se rapidamente, passa o desodorante, após vestir-se, nunca antes, sempre esquece deste detalhe, todas as manhãs.
Após pegar sua mochila verde, com um conjunto estranho e anormal de zíperes, lembrando bem de longe uma pequena mochila de camping, Sid vai até a cozinha. Corta um pão, que em cima tem umas sementes de girassol juntas a massa, algo meio nojento para ele, mas sua mãe sempre dizia que aquilo era saudável e se ele quisesse manter-se vivo e saudável por mais tempo deveria, principalmente, comer comidas saldáveis como aquela. Para empurrar goela a baixo toma um copo de leite. Ele sabia que tomar leite pela manhã sempre lhe causava umas dores de cabeça, principalmente na região baixa de trás, próxima à nuca. Mas fazer o que? Tomar água? Perguntou a si mesmo.
O relógio. É o relógio. O relógio caramba!! Nossa como o tempo passa rápido estas horas da manhã. Já estava com seu cronograma matinal quebrado. Se saísse agora, mesmo que corresse não conseguiria pegar o ônibus das 7h15. – Não dá pra chegar atrasado, desta vez não haverá perdão! – pensou nisso e logo numa possível desculpa. – Talvez a de ter estudado até mais tarde, e perdido a hora por isso? Não essa não cola mais, muito clichê já – é desta vez as desculpas seriam difíceis de serem formuladas. O caso de atraso já era corriqueiro e dele todos já estavam se cansando.
- Tenho que correr, correr mais – repetia em sua mente em quanto abre a porta, corre até o portão, abre, sai e fecha. – O ônibus, o ônibus, o ônibus laranjado, é ele, não, não, não, calma, espera, espera... – gritou freneticamente e com os braços feitos em acenos desesperados. É, mais uma vez ele se vai e Sid fica. Muito distraído. Isso mesmo, muito distraído.
Que pena. O que resta é atravessar a avenida. Do outro lado o ponto de ônibus. Esperar mais 20 minutos pelo próximo e esperar pela bronca. Mas entre pensamentos diversos, um lhe veio de maneira mais concreta. – Tenho de ter mais atenção – pensou, enquanto caminhou, olhando para o asfalto mesclado de pedras claras e escuras, com saliências lembrando rugas pequenas e muito próximas umas das outras.
Aquelas horas da manhã são muito movimentadas. Inúmeras pessoas andando pelas vias em direção ao trabalho, a escola, faculdade, ou até mesmo de volta para casa. Uns olham atentamente para os lados com medo ou mesmo num sentimento desesperador e sufocante diante da vastidão de carros e pessoas por todos os lados. Outras são mais tranqüilas, menos observadoras do que se vê, mas sim do que se pensa quando se vê. Coçam a cabeça, o nariz, olham para cima ou para o chão. Quase autistas, em seu universo de conexões cerebrais. Se os pensamentos são como gavetas no cérebro, este tipo de pessoa fica com todas estas gavetas de pensamentos semi abertas, prontas a saírem e serem escancaradas a qualquer momento.
Sid, olha para o chão. Na beirada da calçada, em frente à longa e agitada avenida, ele para. Olha rapidamente para os dois lados e atravessa. Não, não, não, não, olha pra direita, o carro virou, cuidado, cuidado!!!!
Mas que cara “sem noção”. Que bobeira. Foi atropelado assim, sem mais nem menos, puro vacilo. Sid, em poucos segundos passa da beira da calçada para o meio da avenida, agora deitado, jogado a metros de distância do local da colisão. Ainda consegue abrir os olhos e ver o sol, que a pouco não queria ver, mas naquele momento era a única coisa que não queria deixar fugir de seus olhos. Desesperado começa a pensar na merda que havia feito. Mas nem tempo tem para essa lamentação, tudo foi muito rápido. Logo algo quente começa a escorrer por traz de sua cabeça. Seus membros começam a formigar, sua visão começa a fugir e os lábios não param de tremer. Uma mulher chega, ele a vê, mas não o suficiente para reconhecer seu rosto. Naquele momento, com as pálpebras ainda abertas, sua visão escurece de vez. Sid morre a caminho do hospital, vítima de desatenção crônica.

N.A.: Esta crônica será publicada também na edição de março da revista SePluga.

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