terça-feira, 26 de outubro de 2010

No pregador

Texto e foto: Zé Beto

Um dia me compraram. Eu não sabia como cheguei àquela loja. O velho de cabelo branco me pegou com a mão direita enrugada, jogou dentro de uma cestinha, pagou, me enfiaram dentro de um saco plástico e aí fui jogado no banco de trás de um carro velho, desses que andam sacolejando. De repente estava na boca da cadela. Ela nem me cheirou. Abocanhou e me levou para um corredor lateral da casa onde havia uma nesga de terra. Vi ela cavando um buraco na terra preta. Pensei: me fudi. Ia ser enterrado vivo, ou morto, ou sei lá o que porque sou um boneco peludo que imita um... um... cachorrinho. Tem amigo meu que levou sorte. Vi comprarem no supermercado e entregarem para bebês. Eu, não! Me deram para uma cadela mimada. Sim, ela é mimada. O velho dá comida na boca, viciou-a em chocolate e ela só não sobe na mesa por falta de vontade. A cadela dorme com ele na cama de casal. Substitui, no momento da siesta, a dona da casa que foi embora. Mas, como eu dizia, a cadela queria me enterrar feito os ossos que ganha quando o velho vai a uma churrascaria. Ele sempre traz e, às vezes, quando almoça em restaurante que vende a quilo, compra comida especialmente para ela. Fui salvo porque ele veio atrás e disse para ela não fazer aquilo, que era um brinquedinho, etc. Acho que ele está tentando tirar o pecado que cometeu de nunca ter colocado a cadela para fuder com cachorros. Tanto carinho, tanta paparicação, e a cadela nunca soube o que é um pau. Por isso enlouquece cada vez mais no cio. Se deixarem, ela destrói a casa inteira. Seu principal passatempo e ficar se esfregando feito uma doida alucinada num pano sujo que enrola. Ainda bem que o velho me tira do circuito nesse período. Senão não estaria contando isso para vocês.

Acho que ele pensa que eu posso substituir os filhos que ela não teve. Coisa de doido! Acho que ela gostaria que eu tivesse um pau enorme para trepar com ela. Eu tenho forma de cachorrinho. Miniatura. Mas não tenho pau. Passou um tempo e ela nem ligou mais pra mim. Só quando aparece outro maluco, que eu nem sei quem é, mas que não gosta da cadela e que, por isso, me dá uns bicos para ela correr atrás. Se ela me prende na boca, quando me baba todo, ele tenta arrancar. Qualquer dia o maluco vai arrancar minhas pernas, ou me dividir no meio. Ainda bem que aparece pouco na casa. Mas foi ele que recomendou que o velho me lavasse. Eu era branco. Fiquei sem cor. O velho lavou e me pendurou no varal. Um pregador cor de rosa me segurou no fio de naylon. Aí acontenceu. Me esqueceram aqui. No começo doeu. Não o nariz, porque eu não sinto isso. Mas a solidão. Depois fui me acostumando, mesmo porque daqui posso ver a lua, o sol, tomar banho de chuva, etc. Já faz mais de mês que estou assim. Gostaria de ficar para sempre. Mesmo porque, tudo me irrita na cadela, principalmente o nome estrangeiro que tem.

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