terça-feira, 21 de outubro de 2008

O militar e os bonecos

Na rua de trás. A caixa de sapatos. O tiro pelas costas.


Owaki



Gabriel foi militar. Antes de se tornar militar, a rebeldia, a desorganização e sonolência tomavam conta de seus dias. Era do tipo de cara que deixava os cabelos cobrirem os ombros. Andava sempre em desalinho quanto ao vestuário e achava isso natural, algo que veio com ele do mesmo jeito que a cor da pele ou dos olhos castanhos esverdeados.


Guilherme e Artur são seus melhores amigos. Diferente de Gabriel, que se tornou militar, Guilherme e Artur continuam os mesmos bêbados e drogados de antes. Levam vidas organizadas, simples, plásticas, com obrigações a serem cumpridas. Porém desleixados como sempre, sempre jogados pelos cantos, com pó suficiente para abortar qualquer pensamento vindo do mundo real.


O militar, Gabriel, que a muito se sentia bem entre essa vida comum de civil de classe média baixa, que não recebe benefícios e sustenta família, casa e vícios apenas com o ralo salário que nem lhes proporciona a viajem para o litoral nos fins de ano.


Agora, com sua vida regrada, forçada pelo desejo exacerbado de ser um disciplinado combatente, ele se alienou do mundo da imaginação criado por ele e seus dois amigos. Pegou aversão. Sua meta era sempre estar alerta. Ligado constantemente e incessantemente. Acostumar-se aos extremos. Gabriel desejada isso diariamente.


Se tornou em pouco tempo um homem cinco vezes mais forte e musculoso do que fora. Seu tratamento pessoal se restringia ao suficiente e sempre da maneira mais racional possível. Mulheres que o digam. Força e virilidade tinham residência fixa no corpo careca e de media estatura de Gabriel.


A distância de seus antigos amigos foi aumentando a medida que os treinamentos de guerra se intensificavam. Quanto mais suor no campo, menos sangue na batalha, pensava Gabriel. Fixamente queria se tornar, cada vez mais e mais, num assassino perigoso e ufanista. A baioneta no inimigo enfiar, ele vai pedir perdão por algo que nunca cometeu, por um crime que nem chegou a conhecer a face. Num rio de sangue se banhar, sangue do inimigo. Gabriel sujo de lama.


Dormindo numa barraca improvisada num campo longínquo ele percebe que toda aquela aceleração, disposição afunilada em ódio e assassinato são cansativas demais. Demandam muito esforço e o mundo de viagens internas, deixado no passado, guardado nas mãos de Guilherme e Artur era a felicidade plena escondida dos medíocres sob uma cortina de simplicidade.


Ele percebe que seu tempo de defensor assassino passou. Levanta-se da trincheira, caminha em direção a retaguarda. Seu rifle, um antigo Springfield, de fabricação norte americana, muito provavelmente carregado e com o gatilho gasto, é jogado para trás. Enterrado para sempre e confundido com os ossos humanos descarneados pelos bicos de abutres. Sua velha mochila com o numero 51 timbrado é jogada nas costas. Duzentos passos ao norte e ele se desfaz dela. Não pelo peso, mas sim pela necessidade de deixar naquele esquecido campo, o que a ele pertencia enquanto por ali vivera.


Adentrando a mata rala que separa o fim do planalto com a descida íngreme ele sente algo estranho. Lentamente um liquido pegajoso escorre por suas costas. Desertores nunca recebem perdão, meia volta é crime inafiançável. A saudade infinita das divagações de Guilherme e Artur. A desilusão com o mundo perfeito que deveria defender. O desejo de sentir de novo o amor do companheirismo sincero. Tudo isso embebedou Gabriel a ponto de nem sentir o tiro da Colt 45, pistola americana, pertencente a um sargento americano a seis meses esquecido em uma prisão de trabalhos forçados qualquer pelo leste do mundo.


Ele percebe que a escuridão tomará conta de sua visão em breve. Tenta lembrar dos rostos de Guilherme e de Artur. Força sua alma ao máximo. Mas quanto mais tenta ver os rostos, mais confusas ficam as imagens.

Ele então lembra do passeio pelo parque Central, quanto deitaram na grama depois de fumar todos os sentimentos, sortidos e prensados em um papel colorido de sabor de pitanga vermelha que cresce nas ruas de paralelepípedo da velha e úmida cidade onde moravam.


A grama molhada exalava o cheiro mais puro da vida que nascia e se renovava a cada dia. De repente um guarda. Eles correm e correm até tossirem por falta de fôlego e pela boca seca. Guilherme, rosto pequeno, monoselhas, cabelo longo e castanho, nariz arredondado e lábios grossos. Artur com sua velha blusa listrada, testa alta e sisuda, cabelos bem pretos e pele clara. Enfim, com a ajuda do cenário e do conjunto de ações as fotografias dos rostos brilham diante seus olhos.


Que saudade. Nunca mais os verei. Nossas viagens que destruíam nossas almas nos faziam sentir algo diferente. Inexplicável. Mas sabíamos que sentíamos. O ar doce dos pensamentos desorganizados nos era dado todos os dias. Diferente dessa indiferença, dessa desumanidade, desse sabor intenso, mas sem sentido.


Gabriel morre. Antes mesmo de se lembrar porque tinha mudado sua vida tão rápido. O porque de deixar de lado a única coisa importante que tinha. A capacidade de sentir. Sentir de verdade. Mesmo que fosse a tristeza, a dor, a angustia, o amor, a alegria, o cansaço, o sono, a imaginação.



Não sentia mais nada. Morte sem valor. Esquecida. Em vão.


Gabriel se arrependeria quem sabe. Não deu tempo. Quantos eu já vi pagando pra ver.

Guilherme e Artur eram seus bonecos de plástico. Que foram vendidos a um antiquário por sua mãe, depois da morte de Gabriel. Hoje eles enfeitam uma velha caixa de sapatos no fundo de um armário empoeirado numa casa de um bairro próximo a centro de Curitiba. Gabriel morreu na Itália há 60 anos. Ele tinha apenas 19. Nunca acharam seu corpo, foi dado como desaparecido. Seu nome foi dado a uma rua que passa atrás da casa onde moram Guilherme e Artur.


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Todos os personagens, fatos e lugares são em sua maioria fictícios e produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, acontecimentos e locais reias, é mera conhecidência.


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