quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Peixes


uma crônica de Zé da Silva


Queria congelar a memória num daqueles momentos que, não se sabe por quê, ficou e volta, sempre volta, em qualquer momento, basta um nada, um odor, uma cor atravessando o ar, um som, uma palavra, um uivo, um gozo, um afago, uma neura, um surto, uma alegria, uma tristeza, a solidão mais dolorida. A loja na rua era daquelas esquecida no tempo. Tinha balcão de madeira e tampos de vidros onde se via tudo - de retrós de linha a bolinhas de gude leitosas. Um dia ele tomou coragem e entrou, dinheiro enrolado e amassado na mão direita. O senhor de cabelos ralos e brancos ergueu os olhos por cima dos óculos. Ele gelou. O dono da loja abriu um sorriso. Ele voltou a respirar. Pediu um pião, com fieira. Perguntou o preço. Dava para comprar. Foi aí que viu a camiseta pendurada na parede. Regata. Listrada. Preto e branco. Foi o momento eterno. De deslumbramento. Se viu vestido e praticando todos os esportes para defender aquela camiseta, não um time qualquer. Não tinha dinheiro para comprá-la. Nem podia pedir para os pais tal luxo. Ficou então com ela para sempre. Ela, a loja, a rua, aquele canto, o mundo. Já viu camisas iguais. Mas não igual àquela. A sua. Da sua lembrança. Que volta. E ele quer congelar para voltar a ser criança.

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história de um velho colunista de jornais.

"Ficou então com ela para sempre. Ela, a loja, a rua, aquele canto, o mundo"

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