Morro do Canal I
Na estrada foi fácil. Um animo que envolvia até a medula, conversando tudo passa rápido. Difícil mesmo foi subir o morro do canal. “Até o cume”, dizia o Guia. Após a primeira curva na subida, a primeira desistência. O Segurança assume a mochila. Agora nós todos éramos um trio. Eu, o último da fila. Asmático e derretendo vivo, a mata passa, corta, arranha, coça. Logo as pedras começam a aparecer no terreno semi-vertical. As garras de ferro e as correntes na rocha auxiliam a subida íngreme. No começo parecia fácil, mas logo esta idéia (falsa idéia) desapareceu junto com o limbo, o musgo que nós esperava alguns metros acima.
Depois da metade o fôlego não é o mesmo. “Uma conversa, uma instrução verbal no caminho pode encurtá-lo”, pensava eu. Realmente, e isso não foi difícil, iniciamos a conversa. Agradável conversa. Mais a hora só tendia a ir mais devagar, os ponteiros custavam a correr pra frente (na verdade pareciam ir para trás) e a subida começou a me parecer mais pesada. Tudo então ficou mais íngreme, mais pedras apareceram e pela primeira vez (durante a subida, pois antes já tinha visto) vi novamente o cume. O ensolarado e pedregoso topo do morro.
Lá em cima tomamos mate numa cuia de metal e deixamos o vapor daquele cheiro denso e delirante evaporar e inflar os pulmões. A vista era magnífica. O céu limpo com apenas umas nuvens que despencavam suas águas sobre uma cidade na linha do por do sol. Era muito grande. Dois outros montanhistas nos cruzam. O Guia fazia recortes do infinito com sua câmera fotográfica. Até fez imagens do trio. Eu, o Segurança e o Guia, em frente à câmera que disparava sozinha após dez segundos do clique.
Cobrimos-nos com anoraques e blusas para ver o sol se por. Quando a nuvem expurgou a bola flamejante, a bola de fogo, o universo ficou amarelo e laranja, laranja-fogo. Nós nos extasiamos.
A descida foi no escuro, só se via as pedras mais claras. Então as pedras pareciam lixas ao apoiar o corpo para baixo. À noite a janta de lentilhas. As conversas e mentiras ao lado da roda de cadeiras na varanda escura. A conversa na plataforma de pedras olhando para uma lua estalada, com seu coelho craterial. Dois viajantes chegaram naquela noite. De motocicleta. Conversaram e foram embora. Apesar de já ter ido dormir, enquanto os outros ainda conversavam, sei que foram embora, pois os dois não estavam na caverna pela manhã.
As conversas se encurtaram o dia. Eu vi o ponteiro retroceder várias vezes, mas o tempo da fala não fica aprisionado entre o traçado do relógio. Eu não sabia. Talvez a subida íngreme me tenha mostrado. Talvez as diversas ranhuras em minha mão feitas pelas rochas-lichas da descida tenha me revelado isso. Não sei, talvez eu já soubesse, mas só não lembrava.