Roque sabe, não se lembra quando ouviu que na parte mais baixa, depois do soalho da velha casa de madeira onde mora, depois do espaço aberto entre a madeira e a terra, dentro da terra precisamente é onde se escondem. Ali, disseram seus vizinhos – era um cemitério de crianças. Era o lugar onde aquele velho alemão, na época com uns cinqüenta e tantos anos, enterrava seus filhos que nasciam mortos. Ele não sabia por que, poderia ser um problema genético dele ou de sua mulher, certamente era algo que ele não conhecia. Tentaram pelo menos umas seis vezes, em todas, a pior possibilidade se repetiu. Ela abortava espontaneamente no sétimo mês, ou do sétimo para o oitavo mês de gravidez e ele não sabia o por que. Sua bela mulher, cabelos negros e grossos, uma autêntica descendente direta de italianos que migraram para o Sul. Imagine que belas crianças teriam. Na igreja, repetidas vezes viam crianças serem apresentadas, pais agradecidos pelo filho nascido. Em seguida olhavam para dentro de casa e lembravam-se da terra maldita abaixo do soalho. Era o fim. E ninguém sabia por que aquilo acontecia. O velho alemão quase desistiu de ter filhos com medo de ter de enterrá-los, mas numa manhã, sua mulher levantou-se, pegou o velho banquinho de madeira foi sentar na varanda para ler um livro. Quando se abaixou sentiu uma leve pontada na barriga, foi então que percebeu – estava grávida outra vez. Ela teve uma menina, que poderia ficar grande, alta como o pai, um gigante poderia se dizer. Mas seu rosto não era como dos gigantes, não como os germânicos, rostos compostos por falanges duras como suas frentes de batalha, os guerreiros gigantes do norte. A menina era perfeita, uma autêntica latino-americana. Tão logo a menina completou um ano, mudaram-se para uma nova casa, mais ampla, com piscina. Foram felizes pode-se dizer, mas em poucos meses a mulher morreu e o alemão se viu novamente sozinho e agora com uma criança no colo. Ele ficou triste, completamente arrasado vendo sua idéia de família perfeita explodir no ar. Fodido, mas não a ponto de coçar sua cabeça durante a direção e virar o volante rumo às vias que levassem para a antiga casa de madeira. Nem mesmo dentro de seus circuitos mentais mais profundos queria lembrar que aquilo existiu. Às vezes sonhava com as criancinhas, mas nunca via os rostos delas. Um dia enquanto olhava sua menina no portão de casa ele a chamou e ela então olhou para trás, mas não tinha rosto, o velho alemão ficou louco e evitava olhar para a criança desde então. Mas isso era impossível, ela o forçava olhar e ele não via mais seu rosto, assim como os irmãos dela que ele nunca pode conhecer as feições. Com medo de que esse fantasma de carne e osso fosse persegui-lo para sempre o velho acertou a pequena com uma faca de cozinha na cabeça e em seguida cortou a própria garganta e morreu sufocado com o sangue. Roque não sabia de tantos detalhes, isso porque nunca tinha visitado a mesa da casa da vizinha onde estes requintes de crueldade pairavam no hálito das conversas. Ele apenas ouvia de longe um ou outro detalhe do velho alemão desafortunado e desgraçado saindo da boca da vizinha em direção a alguém de sua família, sempre Roque ouvia de longe. Mas esta madrugada era a primeira depois de descobrir na casa do cachorro um osso idêntico a um fêmur, só que miniatura. Vomitou pelo menos umas cinco vezes, nas três primeiras alguma parte do bolo alimentar voltou, mas nas duas últimas foi apenas contorcionismo de abdômen. Não teve coragem de voltar e tirar de lá, muito menos contar para alguém. As dividas impediam qualquer mudança daquela casa naquele momento e caso fosse verdade quem sabe poderiam requerer um desconto na imobiliária ordinária que os agenciou o negócio. - Cemitério de crianças, que horror! - gritava sem emitir som. Como poderia provar? Quem iria cavar aquela porra? A testemunha ocular do único artefato que provaria as histórias da vizinha colocaria os fatos na mesa? Ele teria coragem de se lançar nesta tentativa macabra de provar a merda toda e ganhar algo com isso ou simplesmente ficaria calado?
- Que merda, que porra, que porra do caralho! – corta o cérebro por dentro sem pena.
j.a.
Esquece de tudo. Talvez seja apenas uma mentira fedorenta dessa vizinha fofoqueira, talvez seja uma coisa que ela mesma tenha feito em baixo do soalho da casa dela, talvez seja menos, seja apenas uma história que tenha lido em algum livro de merda, um livro tosco destes de terror vagabundo e alucinógeno demais para ter alguma coisa de verossímil. É, pode ser, pode ser pior ainda, poder ser a trama de um filme, daqueles de segunda linha, produções menores dos estúdios americanos. Terror barato que não tem nem a autenticidade de um trash do Zé do Caixão, nem efeitos especiais suficientes pra preencher a imagem. Uma bosta fresca toda vez que você liga a televisão de madrugada num canal de horroshow. Talvez seja apenas isso, e portanto não tem importância, e mesmo que o soalho da casa seja um cemitério de bebês que não chegaram a ser nem recém nascidos, e daí? Qual é o problema? Estão mortos, já era! Só resta um problema (o ossinho) e duas testemunhas. - Tudo que pode ser feito de manhã fica sempre mais caprichado, afinal é só uma noite até que o único indício da terra maldita suma e então não haverá provas materiais de que ele existiu. Apenas duas testemunhas. Pela manhã desceu as escadas foi até o quintal depois que todos saíram e com uma pá pegou o ossinho jogou dentro de um saco e colocou no porta malas do carro. Só restava o último ato e o primeiro crime (isso porque ocultar uma prova não é crime até que descubram). Colocou uma faca de cozinha no bolso, tirou o carro da garagem, mas antes de fechar o portão chamou o cachorro para dentro do veículo. Trancou a porta e seguiu rumo a região do lixão onde pretendia despejar o cadáver do animal.